Rememorando cinco anos de perturbação económica:
azia ou ataque de coração?
Quando mercados económicos significativos dos EUA se descontrolaram
durante o Verão e fins de 2008, um temor, mesmo um pânico,
apossou-se dos encarregados de desenvolver e aplicar a política
económica. O pensamento prevalecente – capitalismo desenfreado com
confiança quase religiosa em mecanismos de mercado – parecia estar
em retirada irreversível.
O mercado habitacional esfriou, os valores das casas contraíram-se, e a
estrutura financeira construída em torno da propriedade habitacional
começou a entrar em colapso. Na medida em que o mercado de
acções caía em queda livre das alturas anteriores, levado
pela implosão das acções de bancos, os investidores
retiravam-se dramaticamente do mercado. O crédito congelou e o consumo
diminuiu. Começou então uma espiral decrescente de despedimentos
colectivos, consumo reduzido, entesouramento de capital e crescimento
retardado, seguida por mais despedimentos, etc, etc.
Com o medo, decisores políticos mexiam-se para encontrar uma resposta
à crise que ameaçava aprofundar-se e propagar-se às mais
remotas paragens da economia global. Com taxas de juro próximas de zero,
reconheceram por fim que a caixa de ferramentas monetarista, em uso desde a
administração Carter, não apresentava resposta.
No fim da administração Bush, líderes bipartidários
aprovaram a injecção de centenas de milhares de milhões de
dólares públicos no sistema financeiro com a esperança de
estabilizar o valor de mercado dos bancos que estava em colapso, um movimento
popularmente alcunhado como "bailout" (salvamento externo).
No princípio da administração Obama, administradores do
Partido Democrata carpinteiraram um outro programa de recuperação
que totalizava cerca de três quartos de um milhão de
milhões
(trillion)
de dólares, um programa envolvendo uma combinação de
cortes fiscais, projectos público-privados de infraestrutura e
alívio directo ampliado. A generalidade dos economistas encarou este
esforço como um programa de "estímulo" destinado a
disparar uma explosão de actividade económica para dar o arranque
a um motor económico enguiçado. Estimativas em dólar dos
salvamentos federais e estímulos federais destinados a ultrapassar a
crise ascenderam a valores tão altos quanto o Produto Interno Bruto de
um ano nos anos iniciais após o início da queda livre. A Reserva
Federal continua a fazer uma transfusão de US$75 mil milhões por
mês para as veias da ainda enferma economia dos EUA.
Má fé
As últimas três décadas do século XX produziram um
novo consenso económico: não meramente do primado do mercado, mas
sim da total governação da vida económica pelo mercado.
Acreditou-se que a regulamentação desestabilizava os mercado e
não que o corrigia. A propriedade pública e os serviços
públicos eram vistos como ineficientes e entraves inadmissíveis
às forças do mercado. Tanto a vida pública como a privada,
para além do universo económico, foram sujeitas aos mercados,
medidas pelos mecanismos de mercado e analisadas através das lentes do
pensamento de mercado. Na verdade, a linguagem de mercado
(market-speak)
tornou-se a língua franca unificadora de todas as ciências
sociais e humanas nesta era. Com a queda da União Soviética, o
capital e seus processos orientados pelo lucro penetraram todos os cantos do
mundo. Só movimentos independentes, anti-imperialistas, desconfiados do
mercado, como aqueles liderados por Hugo Chavez, Evo Morales e uns tantos
outros obtiveram algum êxito político contra a dominância
global sem precedentes da propriedade privada e dos mecanismos de mercado.
Enquanto o capitalismo na sua forma mais crua e agressiva desfrutava os seus
momentos de triunfo, estavam em actuação forças que
minavam aquela celebração. Aquelas forças estragaram a
festa em 2000 sob a forma de um grave arrefecimento económico, a chamada
"Recessão Dot-com" caracterizada por uma perda de valor no
mercado de acções de US$5 milhões de milhões e o
desaparecimento de milhões de empregos. Economistas assombravam-se pela
lentidão com que os empregos estavam a retornar até os EUA e a
economia global serem atingidos em 2008 por outra bofetada ainda mais poderosa.
Claramente, a primeira década do século XXI será recordada
como uma época de crise económica e incerteza, uma
perturbação que continua até o dia de hoje.
Além do custo humano – milhões de empregos perdidos,
pobreza, número de sem abrigos, oportunidades perdidas,
destruição de riqueza pessoal – o século XXI
infestado de crise desafiava a ortodoxia prevalecente dos mercados sem peias e
da propriedade privada. Mesmo advogados tão sólidos e fervorosos
daquela ortodoxia, como o
Wall Street Journal, The Economist
e
The Times
foram abalados pela crise, questionando a validade de princípios
económicos clássicos.
Nenhum princípio é mais querido e essencial para os adeptos do
livre mercado do que a ideia de que os mesmos são auto-correctores.
Apesar de poder haver desequilíbrios económicos de curto prazo
ou maus tempos nos negócios, os advogados do mercado livre acreditam que
o seu movimento tende sempre ao equilíbrio e à expansão no
longo prazo. Portanto, uma estagnação persistente e de longo
prazo, ou declínio, é considerada virtualmente impossível
(com a condição de que não haja restrições
impostas ao mecanismo de mercado).
Assim, quando a era da mais ampla economia global de mercado aberto
experimentou o mais catastrófico colapso desde a Grande
Depressão, levantam-se sérias dúvidas acerca dos
princípios fundamentais da ideologia de mercado. E durante os dias mais
negros de 2008 e 2009, um verdadeiro pânico ideológico abateu-se
sobre sabichões e peritos da direita e da esquerda
"respeitável". Alguns reabilitaram um economista fora de moda
e falaram de um "momento Minsky". Liberais proclamaram a morte do
neoliberalismo (a expressão popular para o retorno à
respeitabilidade da teoria económica clássica que começou
no fim da década de 1970). E outros ainda anteviram uma
restauração dos intervencionistas teorias económicas
representados por John Maynard Keynes, teorias que guiaram a economia
capitalista através da maior parte do período do
pós-guerra. Mesmo os economistas mais conservadores admitiram que a
supervisão do mercado, se não mesmo a
regulamentação, era tanto necessária como desejável.
Contudo, a mudança surgiu. Apesar de mais de cinco anos de
declínio e estagnação, apesar de um contínuo
fracasso dos mercados para a auto-correcção, a ideologia do livre
mercado continua a dominar tanto o pensamento como a política,
claramente mais baseada na fé do que na realidade. Em parte, a
resiliência da filosofia do mercado aberto emana da perspicaz
fabricação do medo do endividamento por políticos e
traficantes de dívida das instituições financeiras. Ao
levantar o grito estridente da explosão da dívida e da
catástrofe iminente, a atenção desviava-se dos fracassos
dos mercados sem peias e dirigia-se à austeridade governamental e
à redução da dívida maciça.
Diagnóstico?
É evidente que todos os modelos matemáticos vencedores do
Prémio Nobel, concebidos para apreender a actividade económica,
fracassaram na previsão e explicação do crash de 2008.
Nenhuma quantidade de fé poderia disfarçar o fracasso monumental
dos mercados não regulamentados e das políticas que os
promoveram. Duas explicações simplistas e conflitantes,
agudamente contrastantes, são avançadas.
Os defensores dos mercados livres, desavergonhadamente e arrogantemente
argumentam que o governo se intrometeu e prejudicou a plena e livre
operação dos mecanismos de mercado, exacerbando portanto o que
teria sido uma correcção penosa mas que seria resolvida
rapidamente. Seguindo a metáfora mencionada no título deste
artigo, a azia foi mal diagnosticada, tratada com cirurgia radical, só
para criar uma condição que põe a vida em perigo.
Naturalmente, isto é uma insensatez dita em proveito próprio.
Seja o que for que possamos saber acerca de mercados, sabemos isto: desde que o
processo de desregulamentação de mercados começou no fim
da década de 1970, as crises têm ocorrido com mais frequencia, com
maior amplitude e com consequências humanas mais drásticas. Antes
disso, e durante todo o período anterior do pós guerra, a
intervenção do governo e a regulamentação tendiam a
prevenir períodos maus, moderar o seu nadir e suavizar os custos
humanos. E um vislumbre do período anterior de política
favorável ao mercado – os primeiros anos da Grande Depressão
– demonstra a loucura de simplesmente esperar pela correcção
prometida: as coisas só ficam piores. Assim, tal como agora, a vida
demonstrou ser um capataz duro. Quando mecanismos de mercado realmente
dão para o torto, ninguém pode se dar a luxo de esperar por
auto-correcção.
Os oponentes liberais e da esquerda suave ao mercado sem peias apresentam um
argumento diferente. Eles vêem a crise não na ausência de
mercados livres mas sim no fracasso em supervisioná-los e
regulamentá-los adequadamente. Nesta visão, partilhada por quase
todos os liberais e a maior parte da esquerda não comunista, os mercados
são mecanismos económicos fundamentais – essenciais, se
quiser – mas melhor pastoreados por controles do governo que os pilotam
para porto seguro quando ameaçam fugir ao controle.
Portanto, a crise de 2008 teria sido impedida, acreditam eles, se regras e
regulamentos permanecessem em vigor tal como haviam sido anteriormente
concebidos e implementados a fim de proteger a economia dos excessos do
mercado. Se não houvéssemos afrouxado as regras e regulamentos,
nunca teríamos experimentado o desastre de 2008.
Esta visão é história mal contada e análise
económica ainda pior.
Se bem que os liberais gostem de acreditar que regulamentações e
instituições geradas pelo New Deal da década de 1930
estabilizaram o capitalismo e domaram os mercados, a verdade é outra. O
maciços gastos de guerra iniciado algum tempo antes da entrada dos EUA
na II Guerra Mundial resolveram os problemas de crescimento e de excesso de
mão-de-obra associados à longa década de
estagnação, recuperação hesitante, recuo e nova
estagnação que assolaram a economia desde 1929.
O capitalismo ganhou novo impulso com a reconstrução do
pós guerra. Forças produtivas foram restauradas onde haviam sido
destruídas, renovadas quando estavam gastas e melhoradas face aos novos
desafios. Esta vasta reestruturação do capitalismo produziu novas
oportunidades tanto para o lucro como para o crescimento. Ao mesmo tempo, a
lição do gasto militar maciço, socializado, público
e planeado não foi perdida. Novas ameaças foram conjuradas, novos
temores construídos. A guerra quente na Coreia e a Guerra-Fria sempre
crescente alimentaram uma expansão dos EUA sem precedentes. Não
é inadequado caracterizar esta expansão do pós guerra como
um período de "keynesianismo militar". Por outras palavras,
foi uma era de politicas keynesianas de gastos governamentais planeados e
extensos acoplados a encomendas militares fora do mercado. Na medida em que
transferia uma fatia significativa da economia capitalista para um comando, um
sector extra-mercado, ela assinalou uma nova etapa do capitalismo monopolista
de estado, uma etapa que adoptava algumas das características do
socialismo.
Mas em meados da década de 1960 este "ajustamento"
começou a perder a sua vitalidade. O crescimento do lucro, a
força condutora da expansão capitalista, começou um
declínio persistente (para uma ilustração gráfica
desta tendência, ver a página 103 de
The Economics of Global Turbulence
(
New Left Review,
May/June 1998), de Robert Brenner.
A queda da taxa de lucro emparelhou-se à enorme inflação
de meados da década de 1970. As soluções
militar-keynesianas para a crise capitalista estavam gastas, exauridas,
demonstrando-se inadequadas para tratar uma nova expressão da
instabilidade do capitalismo. Talvez nada tenha assinalado mais a bancarrota da
ortodoxia (keynesiana) prevalecente do que a desesperada campanha WIN (
Whip Inflation Now,
Bata a inflação agora) da presidência Gerald Ford, uma
tentativa impotente para deter a crise com determinação em massa.
Ao contrário das afirmações de liberais,
sociais-democratas e outros salvadores do capitalismo voltados para reformas, a
resultante mudança na ortodoxia não foi meramente um golpe
político, uma vitória da ideologia retrógrada, mas ao
invés disso um desmanchar das fracassadas políticas keynesianas
da época. Portanto, a "revolução" de
Thatcher/Reagan foi apenas o veículo para um ajustamento
dramático da rota do capitalismo a afastar-se de um paradigma gasto,
ineficaz.
Com Paul Volker assumindo a presidência do Federal Reserve e os
princípios da desregulamentação sistemática, a
administração Carter plantou as sementes do abandono das velhas
receitas. Volker, com o seu crescimento sufocante das taxas de juro, assegurou
uma recessão que afastaria qualquer vontade de resistir ao aperto de
cinto. Mas foi preciso a eleição de Ronald Reagan orientado pelo
dogma para emular a Margaret Thatcher do Reino Unidos e utilizar a
ocasião para estripar salários e benefícios a fim de abrir
o caminho para o crescimento do lucro.
O custo de devolver a vida à moribunda economia capitalista foi arcado
pela classe trabalhadora. Loucamente, a impassível e complacente
liderança [sindical] confiou na continuação do contrato
tácito da Guerra Fria: O trabalho apoia a campanha anti-comunista e as
corporações honram a paz trabalhista com salários firmes e
crescimento de benefícios. Ao invés disso, o crescimento do lucro
foi restaurado pela supressão dos padrões de vida do trabalho
– cortando "custos". Seguiu-se uma odiosa ofensiva anti-trabalho.
Se bem que a leal oposição insista em retratar a ruptura com a
teoria económica keynesiana como algo novo (habitualmente alcunhado
"neoliberalismo"), ela foi, de facto, uma capitulação
à antiga. A bancarrota da teoria económica burguesa não
podia oferecer nada de novo, nenhuma resposta criativa à crise
capitalista; ela só podia abandonar uma abordagem fracassada e restaurar
lucros pelo esmagamento implacável do mercado de trabalho.
Esta resposta só podia ter êxito devido à
extraordinária fraqueza do movimento trabalhista. Quando a taxa de lucro
começou a recuperar, faltou ao trabalho liderança e vontade para
não só assegurar uma fatia dos aumentos de produtividade, mas
mesmo para defender seus ganhos anteriores.
Portanto, o capitalismo adquiriu um segundo fôlego ao recuar do consenso
económico do pós guerra e renegar o implícito tratado de
paz com o trabalho. O crescimento do lucro retornou e o sistema navegou.
Mas o contínuo avanço da desregulamentação e da
privatização trouxe consigo um retorno à anarquia
drástica dos mercados. A crise das Caixas Económicas
(Savings e Loan)
das décadas de 1980 e 1990 e o crash do mercado de acções
de Outubro de 1987 foram os arautos do que estava para vir e reflexos de
instabilidade mais profunda.
Com a queda União Soviética e do socialismo na Europa do Leste,
foi entregue um enorme novo mercado ao sistema capitalista global, um mercado
que mais uma vez revigorou as oportunidades para acumulação de
capital e expandiu lucros. Milhões de trabalhadores educados,
recém "libertos" (libertos da estabilidade de emprego, de
condições de trabalho seguros, de protecção legal e
de organização) juntaram-se aos trabalhadores com salários
reduzidos e mal pagos do resto do mundo para constituir um vasto manancial de
trabalho barato. Portanto, uma guerra de classe imensa e unilateral e a
integração de milhões de trabalhadores com salários
deprimidos estabeleceram o capitalismo num saudável caminho de
recuperação do lucro, colocando a agora impotente ortodoxia
keynesiana no espelho retrovisor. Poucos imaginariam que esta viagem duraria
menos de duas décadas, até o capitalismo deparar-se outra vez com
crises graves.
Crescimento económico significativo num período de trabalho fraco
necessariamente produz desigualdade galopante. Com políticas fiscais
amistosas para com as corporações e a riqueza, muitos mecanismos
de redistribuição do governo são exauridos ou
desmantelados. O fluxo de riqueza acelera-se para as corporações
e os super-ricos e afasta-se daqueles que trabalham para viver. Os cofres da
classe investidora incham com dinheiro ansioso por um retorno significativo
sobre o investimento. Quando o processo de acumulação de capital
se intensifica, cada vez menos seguro, surgem oportunidades de investimento
produtivo de alto rendimento para absorver a vasta acumulação de
riqueza sempre em expansão concentradas nas mãos de uma pequena
minoria.
Num capitalismo maduro, novas e mais arriscadas avenidas – tipicamente
removidas do sector produtivo – se abrem para oferecer um lar para o
capital e prometendo um retorno. Banqueiros e outros "magos"
financeiros competem ferozmente para construir dispositivos geradores de lucro
que prometem cada vez mais. Estes instrumentos crescem gradualmente a partir da
actividade produtiva. Além disso, seus "lucros" resultantes
são mais uma vez removidos do valor real, tangível, material. Ao
invés, eles existem virtualmente como capital
"hipotético", ou capital "contra-factual", ou
capital "direccionado ao futuro", ou capital "contingente".
Alguns marxistas apressam-se a etiquetar este produto da
especulação como "fictício", mas isso obscurece
a sua origem fundamental em actos exploradores no processo
mercadoria-produção. É esta expansão de capital
promitente que alimenta volta após volta o investimento especulativo
lubrificado com dívida cada vez maior.
Abundam metáforas do fim de jogo deste processo: "bolhas",
"castelo de cartas", etc. Mas em última instância a
causa da crise é o fracasso em satisfazer a infindável busca do
retorno. Por outras palavras, a causa da crise reside no processo de
acumulação intrínseco ao capitalismo e à
incapacidade para sustentar um retorno viável ao sempre crescente mar de
capital e capital promitente. Os capitalistas medem o seu êxito pelo modo
como os seus recursos são plena e efectivamente postos em uso para gerar
novos excedentes. Por outras palavras, o mais profundo e o mais impressionante
sendo da "taxa de lucro". É o critério que guia o
capitalista – uma taxa de lucro efectiva com base nos activos acumulados.
Além das medidas oficiais e forçadas das taxas de lucro, o
crescimento do capital acumulado, ponderado contra as oportunidades de
investimento disponível, conduz o investimento futuro e determina o
curso da actividade económica.
Em 1999, a lucratividade do sector tecnológico caiu precipitadamente em
resultado do investimento irrealizável de milhares de milhões de
dólares à procura de rendimento nas companhias marginais Dot.com
e de serviços internet. Em resposta ao problema da
super-acumulação, investir nas fantasias de jovens génios
de 20 anos demonstrou-se ser tão irracional quanto observadores
lúcidos pensam ser. Seguiu-se o crash.
E mais uma vez os dias estonteantes de 2005, a comprar pacotes de
títulos bizarros com os destroços de hipotecas marotas parecia um
meio de encontrar um lar para vastas somas de capital "improdutivo".
Afinal de contas, o capital não pode permanecer ocioso; tem de encontrar
um meio para reproduzir-se. Mas o que fazer com os rendimentos da revenda de
títulos conduzidos pela procura? Mais do mesmo? Mais risco? Mais
dívida? E repetir?
A porção dos lucros das corporações
estado-unidenses "ganha" pelo sector financeiro cresceu
dramaticamente desde 1990 até o crash de 2008, atingindo aproximadamente
os 40% em meados dos anos 2000 e demonstrando a explosão de
veículos de investimento alternativo que ocupava capital ocioso.
É crucial ver uma ligação, uma necessidade
evolucionária, entre a restauração da lucratividade, a
intensa acumulação de capital e a tendência para a
lucratividade ser desafiada pela falta de oportunidades de investimento
prometedoras. Não é o capricho de banqueiros ou a esperteza de
empreendedores que conduz este processo, mas o imperativo lógico do
capital para produzir e reproduzir-se.
Alguns comentários e observações
Há outras teorias da crise apresentadas pela esquerda. Uma teoria,
abraçada por muitos Partidos Comunista, sustenta que a crise emerge da
super-produção. Naturalmente, num sentido a
super-acumulalação é uma espécie de
super-produção, uma super-produção de capital a que
falta um destino para investimento produtivo. Mas muitos à esquerda
entendiam algo diferente. Eles argumentam que o capitalismo põe mais
mercadorias no mercado do que trabalhadores empobrecidos, mal pagos, podem
comprar. Há duas objecções a isto: uma teórica, uma
ideológica.
Primeiro, a evidência mostra que uma queda no consumo ou um aumento na
produção de facto não antecede o declínio
económico na nossa era. Se a super-produção ou o seu
primo, o sub-consumo, fossem a causa da retracção
económica de 2008, os dados necessariamente mostrariam algum desvio
anterior dos padrões de produção/consumo. Mas não
há nenhum. Ao invés, verifica-se o inverso: a própria
crise provocou um fosso maciço entre a produção e o
consumo, exacerbando-a. A ameaça de oferta excessiva prolonga-se na
enorme pressão deflacionária que agita a economia global. Apesar
do facto de o gasto do consumidor ser uma grande componente da economia dos
EUA, os efeitos da sua estagnação secular ou declínio
têm sido em grande medida atenuados pela expansão do
crédito ao consumidor e a existência, embora ténue, de
programas de bem-estar social como o seguro de desemprego.
Segundo, se consumo retardado ou inadequado fosse a causa de crises,
então políticas redistributivas ou políticas fiscais
proporcionariam uma solução simples para
retracções, ambas impedem-nas e revertem-nas. Portanto, o
capitalismo podia avançar no seu alegre carrossel com pouco temor de
crise. Certamente esta é a atracção ideológica de
explicações de crises pela super-produção: elas
permitem a liberais e sociais-democratas apregoar sua capacidade para
administrar o capitalismo através de políticas governamentais.
Contudo, eles não podem administrar o capitalismo porque as crises
estão localizadas não na arena da circulação
(compatibilizando produção e consumo), mas sim no mecanismo
gerador de lucro do capitalismo, a sua própria alma.
Devido à centralidade do lucro, a explicação da
super-acumulação tem uma afinidade com outra teoria da crise: o
argumento de Marx para a tendência de queda da taxa de lucro. De facto,
pode ser encarada como uma versão contemporânea do argumento sem
as suposições do século XIX.
Felizmente, muitos comentadores de hoje revisitaram a teoria esboçada no
Volume III de
O Capital,
descobrindo uma relevância ignorada ao longo da maior parte do
século XX. Somente um punhado de admiradores do trabalho de Marx manteve
a teoria viva naquela era, autores como Henryk Grossman, John Strachey e Paul
Mattick. Infelizmente, admiradores de hoje, como os antecessores acima
mencionados, partilham o viés acriticamente ao tomar o esquema de Marx
como o Santo Graal. Na maior parte das vezes, Marx usava formalismo muito
ocasional como ferramenta de exposição e não como os
axiomas de um sistema formal. Aqueles treinados na análise
económica moderna são inclinados a saltar sobre estas
fórmulas com um fervor de discípulo. Eles debatem a
resistência de um modelo que descreve a economia global como uma
colecção de empresas a devorarem capital constante a uma taxa
maior do que o emprego de trabalho e mecanicamente deprimindo a taxa de lucro.
Isto é confundir a simplificada exposição de Marx com
explicação robusta. Pode-se aprender muito da
exposição de Marx sem que se faça disto um
exercício escolástico.
Entre os nossos amigos de esquerda, tornou-se popular falar da crise e desta
era como de "financiarização". Isto é sobretudo
inútil. Na verdade, a crise tem muito a ver com o sector financeiro;
este desempenhou e desempenha um papel maior na economia global, especialmente
nos EUA e Reino Unido. Mas recorrer a um novo nome nada faz para expor ou
explicar o papel da finança. Tal como
"globalização" num momento anterior, a palavra
"financiarização" pode ser emocionante, elegante e
conveniente, mas normalmente esconde os mecanismos em funcionamento. É
uma palavra preguiçosa.
Há um ponto nesta algo extensa, mas apenas esboçada, jornada ao
longo do capitalismo do pós guerra. Esperançosamente, a jornada
demonstra ou sugere fortemente que os eventos do passado económico
não foram nem aleatórios nem simplesmente conduzidos pela
política. Eles foram, ao invés, o produto da lógica
interna do capitalismo; eles brotaram de barreiras e de ajustamentos na
trajectória do capitalismo. Quando direcções se mostraram
infrutíferas, novas direcções foram tomadas. Se bem que
não seja possível descartar novas manobras que tratem o problema
inerente da super-acumulação, o problema não irá
embora. Ele retornará para assombrar qualquer tentativa que presuma
conquistá-lo de uma vez por todas. E se o capitalismo carrega este gene,
então seria sábio procurar um melhor sistema económico que
prometa tanto maior estabilidade como maior justiça social.
Naturalmente, encontrar essa alternativa começa por revisitar a ideia
com duas centenas de anos há muito favorecida pelo movimento da classe
trabalhadora: o socialismo. Ligado a esse projecto está a tarefa de
reconstruir o movimento, a organização política
necessária para alcançar o socialismo.
Como as coisas estão no mundo de hoje, há apenas duas magras
opções no menu habitual: uma, é salvar e manter o
capitalismo com os sacrifícios dos trabalhadores e de outros, a outra
é salvar e manter o capitalismo com os sacrifícios dos
trabalhadores e um simbólico sacrifício de uma "quota
justa" por parte das corporações e dos ricos. Nenhuma delas
é muito animadora.
A primeira opção é baseada na papa fina da teoria
económica do "gotejamento"
("trickle down")
e na visão para embalar crianças de que "uma subida da
maré eleva todos os barcos". É a receita dos dois principais
partidos políticos dos EUA, do Abe do Japão, dos partidos
europeus do centro e dos Trabalhistas do Reino Unidos.
A segunda opção também promete salvar o capitalismo, mas
através de uma falsa distribuição justa da adversidade por
todas as classes. Esta é a rota apresentada pela maior parte dos
partidos da esquerda europeia e mesmo por alguns Partidos Comunistas.
Mas um sistema – o capitalismo – que está geneticamente
propenso à extrema distribuição de riqueza e à
crise persistente não contribui para uma refeição
apetitosa. Precisamos, ao invés, dispensar programas que prometem melhor
gestão do capitalismo, como os comunistas gregos (KKE) gostam de dizer.
Isso é para outros que estão em paz com o capitalismo ou
subestimam seus fracassos inevitáveis.
A única resposta para a insuficiência cardíaca do
capitalismo é mudar a dieta e colocar o socialismo no menu.
23/Dezembro/2013
Do mesmo autor:
Nuvens tempestuosas?
A tirania dos títulos
[*]
Economista,
zoltanzigedy@gmail.com
O original encontra-se em
zzs-blg.blogspot.pt/2013/12/looking-back-on-five-years-of-economic.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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