segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Neoliberais na América Latina I. Ortodoxos e convencionados

Neoliberais na América Latina I
Ortodoxos e convencionados


20.Out.14 :: Outros autores
Claudio KatzA América Latina sofreu com antecipação – logo nos anos 70 do século XX - a reaccionária ofensiva neoliberal. Este importante estudo aborda a questão com grande profundidade, e a sua importância vai muito para além da análise específica das políticas neoliberais nesse continente (e das respectivas dimensões teórica e ideológica). Dada a extensão do texto, publicá-lo-emos em dois dias consecutivos.

Quais são as peculiaridades do neoliberalismo na América Latina? Conseguiu uma penetração maior do que nos países centrais? Regista um declive superior ao resto do mundo?
É sabido que esta modalidade reaccionária foi introduzida na região com certa antecipação. As ditaduras do Cone do Sul anteciparam nos anos 70 a tendência de direita, que posteriormente se instalou na maior parte do planeta. Mas a América Latina foi também o epicentro das grandes resistências populares, que propiciaram significativas derrotas a esse aluvião conservador. Uma revisão da trajectória e ideologia do neoliberalismo permite explicar muitas especificidades da região.
Caracterizações gerais
As primeiras discussões internacionais sobre o neoliberalismo destacaram as raízes teóricas desta corrente no pensamento económico neoclássico. Também explicaram o seu aparecimento pelo esgotamento do crescimento keinesiano do pós-guerra e ressaltaram os seus objectivos políticos regressivos. O neoliberalismo foi definido nos anos 80, como uma ofensiva do capital sobre o trabalho para recompensar a taxa de lucro (2).
Na década seguinte constatou-se a hegemonia ideológica mundial alcançada por esta vertente. Apesar dos magros resultados conseguidos durante esse decénio, a direita reforçou-se aproveitando o debilitamento dos sindicatos e o desassossego criado pela fractura social. O neoliberalismo expandiu a sua influência e implementou uma drástica reconversão da economia.
A expectativa num rápido declive dessa corrente foi dissipada pela implosão da URSS e a crise do horizonte socialista. As tendências conservadoras obtiveram um impulso adicional com a anexação da Alemanha Oriental, o amoldamento da União Europeia à globalização e a demolição do estado de bem-estar (3).
A crise económica iniciada em 2008 abriu grandes interrogações sobre a continuidade do modelo privativista. Esta convulsão superou as comoções financeiras precedentes e ilustrou a magnitude dos desequilíbrios criados pelo neoliberalismo. Mas a preeminência deste ciclo manteve-se (4).
A sua persistência verificou-se em todos os acontecimentos da conjuntura 2008-2014. A etapa que começou com o thatcherismo transformou o funcionamento do capitalismo mediante privatizações, aberturas comerciais e flexibilizações laborais. Este esquema intensificou a competição global por aumentos da produtividade afastados do salário, que simplificam todas as tensões da produção, o consumo e as finanças.
Nos últimos anos este modelo aprofundou os atropelos contra os trabalhadores em contextos recessivos que potenciam o temor e a miséria. A desigualdade social alcançou níveis sem precedentes, a pobreza expandiu-se nas economias centrais e a precarização laboral massificou-se em todo o planeta.
O neoliberalismo converge com a internacionalização da economia. A fragmentação mundial dos processos de fabricação e a deslocação da indústria para o Oriente consolidam a primazia das empresas transnacionais. As grandes firmas utilizam as normas do comércio livre e as baixas taxas para desenvolver intercâmbios entre as suas filiais. Estes movimentos escoram ainda a globalização financeira e o fluxo vertiginoso de capitais entre os vários países.
As transformações neoliberais geraram um modelo que opera com parâmetros muito distintos do keynesianismo de pós-guerra. Esse esquema desencadeia crises muito específicas, que já não irrompem como resultado de velhos desequilíbrios dos anos 70. Após três décadas de reorganização capitalista criaram-se novas contradições em múltiplas esferas.
O neoliberalismo contrariou os rendimentos populares, afectou a capacidade de consumo, aumentou a sobreprodução de mercadorias e agravou várias modalidades de sobre-acumulação de capital. Acentuou ainda uma deterioração do meio ambiente que ameaça originar desastres ecológicos inéditos.
No plano geopolítico este curso precipitou um novo desenho de fronteiras que contrasta com o mapa congelado da guerra-fria. Já transitou por fases diferenciadas de bipolaridade, unipolaridade e multipolaridade nas relações que mantêm as grandes potências. Mas todos os conflitos entre as classes dominantes se processam num novo marco de negócios globalizados.
O neoliberalismo perdura pelo retrocesso que impôs aos trabalhadores. Sustenta-se do cansaço político que gera alternância de conservadores e sociais-democratas na administração do mesmo modelo. Tudo indica que a reversão desta etapa exigirá grandes vitórias populares impostas a partir de baixo (5).
Neste cenário: quais são as peculiaridades da América Latina?
Justificações e períodos
A meio dos anos 70 o neoliberalismo latino-americano antecipou todas as tendências dos países desenvolvidos. Esse paradigma forjou-se no Chile sob Pinochet, com o assessoramento económico ortodoxo de Hayek e Milton Friedman. Aí experimentou-se a doutrina que posteriormente outras ditaduras da região aplicaram.
Estes ensaios não se extinguiram com o fim dos governos militares. O neoliberalismo foi validado pelos regimes constitucionais que se sucederam às tiranias do Corno Sul. Esta continuidade garantiu as transformações estruturais introduzidas pelo modelo de direita.
A prioridade do neoliberalismo na região fez afastar a influência alcançada pela esquerda e o nacionalismo radical ao calor da revolução cubana. Também arremeteu contra a heterodoxia keynesiana de vários pensadores da CEPAL.
A sua cruzada contra as reformas sociais, a redistribuição das receitas e a defesa do património nacional marcou todo esse período de transição pós-ditatorial. Com algumas mudanças de formato foram revalidadas as principais mutações regressivas impostas pelos militares.
No plano económico o neoliberalismo latino-americano atravessou duas etapas diferenciadas. Nos anos 80 prevaleceram as «reformas de primeira geração» com prioridades de ajuste anti-inflacionário. No decénio seguinte predominou o «Consenso de Washington» com transformações complementares de abertura comercial, privatizações e flexibilização laboral.
No primeiro período introduziram-se políticas de choque para cortar a despesa pública social e elevar as taxas de lucro. Estas medidas foram justificadas com critérios neoclássicos de equilíbrio, que realçavam a primazia do mercado na atribuição dos recursos (6).
Estes postulados walrasianos foram esgrimidos para exaltar o reinado da oferta e da procura e questionar a ingerência estatal. Todos os debates foram encapsulados em conceitos neoliberais. Abundaram os estudos para medir o aporte de cada «factor» (tecnologia, recursos naturais, capital humano) ao crescimento. As avaliações dos processos produtivos foram despojadas dos seus fundamentos sociais e o ensino da economia ficou reduzido a uma indagação de relações funcionais entre variáveis inexplicadas (7).
A ideologia neoliberal incentivou essa fascinação com a formalização e o tratamento da economia como um sistema mecânico, sujeito a ajustes aconselhados pelos técnicos neoclássicos. Toda a tradição latino-americana de estudos histórico-sociais ficou sepultada pelo aluvião de especialistas de Washington e Chicago. A análise das contradições, desequilíbrios ou limites da economia latino-americana foi substituído por ilusões tecnocráticas.
Nesse clima geriu-se a segunda fase neoliberal. Afirmou-se que o saneamento do cenário macroeconómico regional já permitia abrir as comportas da eficiência, desmantelando empresas estatais e eliminando protecções de taxas.
A partir desse momento teve maior relevância a vertente austríaca da teoria neoclássica. As superstições na mão invisível foram complementadas com propostas de darwinismo social competitivo. Incentivou-se o remate das propriedades do estado e a abertura massiva às importações. Com o pretexto de restaurar padrões de risco, esforço e produtividade propiciou-se a redução das receitas populares e o aumento da desigualdade.
O establishment transformou estes princípios num libreto de toda a sociedade. O mesmo relato foi exposto pelos governantes, transmitido nas escolas, enaltecido nas universidades e popularizado pelos meios de comunicação. A organização ultraliberal Mont Pelerin Society e os seus Centros de estudos da Liberdade (CDEL) introduziram muitas ideias para esta contra-reforma.
Crise e Fracassos
No começo do novo século irrompeu a crise do neoliberalismo latino-americano. Os desequilíbrios gerados por esse modelo espalharam-se por toda a região, juntamente com a primazia crescente do sector exportador contra o desenvolvimento interno.
Aumentou a heterogeneidade estrutural da economia e concentraram-se as actividades mais rentáveis num punhado de empresas. A capacidade do estado para priorizar as decisões de investimento ficou muito debilitada (8).
As duas etapas neoliberais de ajuste e corte não só deterioraram as receitas populares como também provocaram a desintegração da velha indústria local gerada durante a substituição de importações. Acentuou-se a vulnerabilidade de todas as economias perante a afluência descontrolada ou saída de capitais externos. Também se intensificou a dependência do vaivém internacional dos preços das matérias-primas.
As economias latino-americanas voltaram a suportar a carência estrutural de divisas. Não puderam assegurar as reservas nem manter sob controlo o tipo de câmbio, a taxa de juro ou o nível de inflação. Quando estes desequilíbrios emergiram, os ministros pró-mercado abandonaram as suas doutrinas e recorreram ao mesmo endividamento que caracterizou os seus antecessores.
Todas as prédicas, a ortodoxia fiscal, cuidado monetário e prudência na expansão da dívida pública foram arquivadas. Optou-se pelo crédito externo dispendioso para lidar com as asfixias geradas pelo próprio modelo. Em muito pouco tempo os mitos do rigor neoliberal no gerenciamento do estado ficaram desmentidos. Esta política desembocou na mesma asfixia de pagamentos que já saqueara repetidamente a região (9).
Vários anos de privatizações e flexibilidade laboral recriaram as crises financeiras, as quebras fiscais, as fugas de capital e os colapsos cambiário-monetários do passado.
A queda da Argentina em 2001 foi a expressão mais dramática desta repetição de velhas convulsões.
O neoliberalismo manteve um baixo nível de actividade económica. A ilusão numa descolagem repentina pelo simples efeito de políticas conservadoras ficou desmentida. O novo corte de salários e da despesa social não incentivou o investimento. Também as privatizações incendiaram a mecha do crescimento.
Em todo o período esteve ausente a esperada bênção de bem-estar desde os ricos até ao resto da população. Só ressurgiram os breves ciclos de maior consumo da classe média. Foi muito visível o enfraquecimento de receitas dos poderosos à custa dos trabalhadores.
O balanço do neoliberalismo é contundente nos próprios termos desse esquema. Pretendia reverter o baixo crescimento e manteve um reduzido nível de expansão da economia. Esperava eliminar as crises financeiro-cambiárias e agravou esses desmoronamentos. Prometia erigir uma plataforma duradoura de investimento e acentuou a distância da região com os países que aumentaram o desenvolvimento.
A tentativa de erguer estes falidos com certa dose do mesmo remédio acabou por precipitar as grandes crises do princípio do século XXI. Estas convulsões confirmaram que as classes dominantes atropelaram as conquistas populares, sem transformar esses êxitos capitalistas em processos suportados de acumulação (10).
Os próprios impulsores do liberalismo extremo ficaram defraudados por um retrocesso económico que deteriorou a incidência da América Latina no mercado mundial. A coesão política inicial do projecto de direita diluiu-se e o modelo afrontou o seu desafio mais directo a partir das sublevações populares de 199-2005.
Rebeliões e viragens
O neoliberalismo latino-americano foi minado por levantamentos sociais com êxito parcial. Este resultado determinou a principal singularidade deste projecto na região. Os protestos puseram um limite à ofensiva do capital, especialmente após quatro levantes vitoriosos (Argentina, Bolívia, Equador e Venezuela) que caíram sob os artifícios do ajuste.
As rebeliões não conseguiram a envergadura das revoluções do século XX, mas modificaram as relações de força e forçaram concessões sociais que contradizem o programa Tatcher-Hayek. Estas conquistas erodiram o plano da reacção e geraram um cenário que diferencia a América do Sul de outras zonas com predomínio neoliberal continuado (11). Neste novo marco a direita ajustou a sua estratégia e introduziu uma variante mais moderada do mesmo modelo. Este curso inclui discursos éticos, certa intervenção do estado e alguma sintonia com a síntese neoclássica-keynesiana do pós-guerra (12).
A retórica que o Banco Mundial adoptou é muito representativa desta mudança. Os promotores do ajuste adoçaram a sua receita e esgrimem uma preocupação hipócrita com a pobreza. Reconhecem as «falhas do mercado» e promovem alguma regulamentação do estado para corrigir os excessos da concorrência (13).
As informações dos organismos internacionais já não apresentam a radicalização neoclássica dos anos 80 e 90. Reconhecem as imperfeições mercantis e destacam a primazia da acção estatal em certas áreas (meio ambiente, capital humano, infra-estrutura). Essas mensagens combinam o acervo ortodoxo coma intervenção pública e propõem novos remédios para a rigidez do preço e os entraves na circulação da informação.
Este neoliberalismo mais atenuado também marca a importância do assistencialismo. Aceita a despesa pública para conter a explosão de pobreza, como um preço a pagar durante a transição em curso. Supõe que isso será passageiro e acabará quando o modelo conseguir mais emprego. Nos factos regista o enorme impacto de grandes sublevações que atemorizaram os capitalistas.
O neoliberalismo do século XXI educou o seu entusiasmo inicial com a globalização. Já não transmite o espírito triunfalista de «fim da história» que Fukuyama anunciava, nem se vangloria com as «vitórias do Ocidente». Aceita a existência de uma variedade maior de caminhos para o bem-estar do que a imitação simples dos Estados Unidos ou da Europa.
Também destaca a incidência dos valores que imperam no Oriente que facilitaram a descolagem da China e do Sudoeste Asiático. Ressalta a centralidade cultural da comunicação global e sublinha a sua estranha influência para incentivar o desenvolvimento da periferia.
O neoliberalismo actual incorporou ainda várias teorias de crescimento endógeno, que realçam a necessidade de investimentos públicos para financiar os processos de inovação. A tecnologia já não é vista como um bem público, neutral e exógeno, que pode ser absorvida por qualquer concorrente atento aos sinais do mercado.
Mas nenhum destes agregados, subtilezas ou complementos modificou as conclusões regressivas do neoliberalismo. Estes corolários mantêm-se tão invariáveis, como as convocatórias para garantir os negócios dos poderosos. A prioridade de políticas «amigáveis» para o capital mediante apertos comerciais, privatizações e flexibilidade laboral não mudaram. O mesmo receituário persiste com uma nova apresentação.
Variedade de sentidos
No início do século XXI o neoliberalismo perdeu a homogeneidade que caracterizou o seu início. O termo adoptou conotações múltiplas e a definição prévia de ofensiva do capital sobre o trabalho ficou referida a quatro problemas específicos.
Em primeiro lugar existe uma interpretação desse fenómeno como nova etapa do capitalismo. Esta acepção alude ao período transcorrido desde os anos 80 até à actualidade à escala global. A peculiaridade da América Latina nesta fase foi a sua inserção internacional como provedora de matérias-primas.
O neoliberalismo traz a justificação desse modelo exportador com primazia agro-mineira, pilares de extracção, fabricação maquilhadora e serviços transnacionais. Todos os governos da região compartilham esse padrão de reprodução primário-exportador.
Um segundo sentido do neoliberalismo reúne os países que optaram por estratégias de comércio livre. O México lidera esse pelotão desde a subscrição da NAFTA com os Estados Unidos e Canadá há 20 anos. A sua economia ficou moldada pelas consequências de um tratado que reforçou a integração do país a potência do norte, como provedor de petróleo e mão-de-obra barata.
Mas o projecto ambicioso norte-americano de forjar um mercado hemisférico para as grandes empresas (ALCA) frustrou-se. As resistências populares, a desconformidade de certos sectores empresariais e a recusa dos governos mais autónomos alinhados com o MERCOSUR neutralizaram essa tentativa em 2005 (Cimeira de Mar del Plata).
A partir daí a promoção imperial de um grande tratado de comércio livre foi substituído por convénios bilaterais assinados com os governos mais afins. Vários TLC consolidaram-se, outros demoraram e alguns ficaram bloqueados. Mas um enxame de acordos já liga os Estados Unidos ao grosso da região centro-americana e a vários países do Sul (Chile, Colômbia e Peru).
Nos últimos anos Obama retomou a ofensiva para introduzir um convénio geral de comércio livre (O Tratado do Pacífico), tendente a gerir uma certa triangulação mundial com a Europa e a Ásia. Também as firmas europeias impulsionaram as suas e tentam abafar o MERCOSUR forjando acordos unilaterais com o Brasil (14).
As mesmas tentativas da Europa com o Equador procuram alargar o diapasão comercial que já impera no Peru ou Colômbia. No caso do Uruguai as negociações incluem um compromisso drástico de abertura comercial e equiparação dos provedores nacionais do Estado com os seus competidores externos (15).
Esta onda de pressões não só recria as rivalidades entre europeus, norte-americanos e chineses pelo controle dos recursos naturais da região. O comércio livre é um mecanismo da globalização que todas as potências promovem. Quanto mais elevado for o número de convénios assinados pela região, maior será a sua subordinação a um modelo que bloqueie o desenvolvimento latino-americano.
A terceira acepção do neoliberalismo alude a uma política económica de ortodoxia monetária, fiscal e cambiária com variantes monetaristas e de oferta. Mas a crise global de 2008 gerou mudanças importantes desta prática. Muitos neoliberais esqueceram os princípios de risco e competitividade e justificam os auxílios estatais aos bancos.
Esta adaptação pragmática ao terramoto financeiro não apresentou até ao momento a magnitude observada nas economias centrais. A região não sofre desmoronamentos bancários, nem explosões de endividamento. Persiste o aumento de preços das commodities (de forma atenuada) e também a afluência de investimentos estrangeiros. Por esta razão crescem políticas contra-cíclicas de despesa pública e impulso ao consumo. Os ministros neoliberais recorreram a estas receitas com o mesmo fervor que os seus adversários heterodoxos, especialmente no Chile, na Colômbia, no México e no Peru.
Certamente existe um tipo de política económica singular do neoliberalismo que se contrapõe ao padrão keynesiano. O sinal determinante desta orientação não é gravitação do Estado, mas a hierarquia destinada às privatizações, a abertura comercial e a flexibilização laboral. Também se dá prioridade ao gerenciamento privado e aos investimentos estrangeiros como substitutos do empréstimo interno.
Quais são os interesses sociais favorecidos pior essa política? É evidente que beneficia os capitalistas contra os trabalhadores, mas não é tão nítido situá-los em sectores burgueses específicos. Alguns autores sublinham as vantagens obtidas pelos especialistas financeiros e outros ressaltam o apoio geral dos grupos concentrados (18).
Avaliações combinadas
O quarto sentido do neoliberalismo é a sua dimensão política. Nesse plano identifica-se com os governos de direita subordinados aos Estados Unidos que recorrem à repressão para calar os protestos populares. Foi a estratégia eleita pelo PAN e o PRI que fizeram correr o sangue no México numa guerra social sob a desculpa de «erradicar o narcotráfico». Também aqui se colocam os mandatários da Colômbia que acumulam em recorde de perseguições e assassinatos de lutadores sociais.
Nesse mesmo campo devem ser colocados os presidentes do Peru que privilegiam a resposta repressiva perante as resistências à mineração. Na mesma política que seguiram no Chile os líderes da Concertação, mantendo os pilares da Constituição pinochetista. O uso da força é também um risco compartilhado pelos presidentes privatistas da América Central.
Todos estes governos desenvolvem agendas reaccionárias indicadas pelos meios de comunicação. Dão especialmente prioridade à difusão de valores conservadores, para opor às classes médias com os sectores mais empobrecidos.
Mas este neoliberalismo político perdeu o impulso triunfalista que exibia nos anos 90. Só mantém uma grande capacidade para lançar contra-ofensivas. Nos últimos anos recorreu ao golpismo com disfarce institucional, para derrubar um presidente tibiamente reformista no Paraguai e para fazer cair um mandatário aliado do chavismo nas Honduras.
A direita fracassou igualmente nas acções contra os presidentes da Venezuela e Bolívia. Esta incapacidade para se impor nos principais países em luta ilustra os limites da reacção. Veremos o impacto à recente aliança eleitoral da direita na Colômbia, a tendência conservadora de vários governos de centro-esquerda e o resultado de eleições importantes em curso.
O rumo norte-americano é o principal condicionante de qualquer acção significativa do neoliberalismo regional. A primeira potência mantém a sua influência na zona com forças militares na Colômbia. A margem de intervenção dos marines ficou reduzida, mas a função geopolítica da América Latina para o império não mudou. Na nova realidade da UNASUR e CELAC o império ensaia caminhos distintos para restabelecer o seu domínio.
O neoliberalismo regional deve ser actualizado avaliando esta variedade de processos. Apresenta quatro dimensões diferenciadas como etapa, estratégia de comércio livre, política económica e governos de direita. É muito importante distinguir esses níveis na hora de estabelecer um balanço.
Ao contrário de outras regiões não há resposta simples para definir se o modelo de direita se encontra na ofensiva ou em retirada. Existem vários governos em conflito com este curso e tem-se obtido triunfos populares que limitarão o seu predomínio. Mas todas as administrações actuais compartilham o mesmo padrão primário exportador de inserção na globalização neoliberal.
Um governo de direita amolda-se por completo ao rumo neoliberal, outro de centro-esquerda não se enquadra perfeitamente nessa senda e os processos radicais chocam com os seus fundamentos. Num caso prevalece a sintonia, noutro a convivência e num terceiro a contraposição.
Esta dessincronização deriva em última instância do impacto gerado por rebeliões populares vitoriosas, que limitarão o alcance regressivo do neoliberalismo sem o sepultar. Introduziram grandes transformações políticas que incidiram de forma muito limitada sobre a esfera económica. Por essa razão é erróneo supor que a América Latina se integrou numa fase «pós-liberal». Essa volta faria supor que toda a etapa das últimas três décadas ficou para trás e até agora essa viragem não se realizou.
Comércio-livre e globalização
Os neoliberais contemporâneos retomam a velha caracterização do comércio-livre como chave mestra do desenvolvimento. Afirmam que é a maneira mais directa de reduzir a pobreza e a desigualdade.
Mas esquecem que a implementação deste princípio na América Latina desembocou na primazia das exportações agro-mineiras e importações industriais. Essa assimetria levou ao subdesenvolvimento, e
à inserção dependente no mercado mundial.
Os defensores do comércio-livre ignoram esta trajectória histórica. Esquecem que a Inglaterra optou por essa estratégia quando já era dominante à escala mundial. Também não se lembram que o comércio irrestrito foi evitado pelos Estados Unidos, Japão ou Alemanha no início do seu desenvolvimento industrial. Só aceitaram parcialmente essa orientação quando conseguiram alta produtividade nos sectores sujeitos à competição global (19).
Todas as economias desenvolvidas impuseram normas de comércio-livre à periferia para assegurar a colocação das suas exportações industriais. Longe de constituir um instrumento de prosperidade para as nações atrasadas, esse corte introduziu obstáculos à diversificação económica e ao crescimento da periferia. A América Latina sofreu o fortalecimento das oligarquias e o bloqueio da acumulação permanente de capital.
Os neoliberais contemporâneos retomam as velhas críticas ao proteccionismo, dizendo que impede o aproveitamento das vantagens comparativas de cada país. Situam essas conveniências na agricultura ou na mineração, como se a América Latina carregasse com um mandato divino de provisão de matérias-primas aos países desenvolvidos.
Não vêem o benefício evidente que indicou esse estatuto internacional às economias já industrializadas e à adversidade que impôs às nações periféricas. Enquanto o primeiro tipo de país pode desenvolver intensos processos de expressão fabril, o segundo grupo ficou relegado a um estado básico de exportador primário.
É absurdo supor que qualquer economia possa melhorar o seu perfil, reforçando a sua colocação «natural» na divisão internacional do trabalho. O desenvolvimento exige o contrário: lidar com a adversidade dos condicionamentos externos.
Nenhum país latino-americano pode tornar-se espontaneamente numa economia avançada, sem modificar a matriz histórica que obstruiu o seu desenvolvimento produtivo. Essa estrutura gera transferências de recursos para os países desenvolvidos e reproduz modalidades distintas do atraso (18).
As ingenuidades livre-cambistas perderam influência durante a segunda metade do século passado com a industrialização do México, Brasil e Argentina. Mas as limitações e fracassos dos modelos de substituição de importações reavivaram a desconfiança prévia nos benefícios da abertura comercial.
Essas ilusões encontraram um novo refúgio. Os efeitos devastadores da desprotecção sofrida pela América Latina nas últimas duas décadas afectaram seriamente a credibilidade dos mitos livre-cambistas. Salta à vista como a discriminação das tarifas aduaneiras desmorona as indústrias locais, perante a aluvião de importações fabricadas no exterior.
Os neoliberais também realçam os benefícios da globalização. Afirmam que a abertura das fronteiras para a circulação do capital vai favorecer as economias relegadas, ao induzir uma translação de fundos dos países com altas dotações de capital para as economias subdesenvolvidas.
Mas se essa tendência fosse tão dominadora já teria cortado com o passado. A existência de um mercado mundial não é novidade do século XX. Arrasta várias centenas de experiências que nunca derivaram em equilíbrios da acumulação.
Teorias da Convergência
O desenvolvimento capitalista não está regulado por simples movimentos de capitais excedentes para os países empobrecidos. É puro sonho pensar que as empresas mandam espontaneamente fundos da Suíça para o Congo ou da Alemanha para Ceilão em cenários de capitais de sobra num país e faltas no outro.
O sistema reproduz-se seguindo outros padrões de rentabilidade determinados por múltiplos factores. A localização do capital está definida pelos custos, os mercados e as expectativas no comportamento das moedas, as tarifas e os salários.
A fantasia globalista supõe que essa complexa estrutura histórica do capitalismo ficou abruptamente solta pelo afinamento de ideários neoclássicos.
Transformam esses imaginários em realidades normativas que ninguém quer corroborar (19).
É certo que a liquidez global flui com mais rapidez e intensidade que no passado, perto de empresas transnacionais que relocalizam a sua produção em certas regiões já ligadas ao capital global. Só nessas condições usufruem da barateza, do adestramento ou da submissão da força de trabalho.
Mas esses movimentos também não se equiparam aos acervos nacionais do capital. Geram fracturas e polarizações que segmentam o capitalismo numa nova ordem de perdedores e ganhadores, com centros, em semiperiferias e periferias.
O esquema das vantagens comparativas desconhece a existência de obstáculos elementares ao logro de equilíbrios mundiais. Ignora a nova sequência de polaridades que caracteriza qualquer organização do mercado global. Um hipotético curso de aproximação da África sul-sahariana com a Europa do Norte ou da América Central com os Estados Unidos gera fracturas de maior alcance que as brechas a reduzir. Esses desníveis seriam próprios da acumulação e obstruiriam as ligações que a teoria neoclássica imagina.
O livre cambismo neoliberal promove políticas reaccionárias com supostos banais. Reivindica a desigualdade social, celebra a mercantilização da sociedade humana, glorifica o consumismo e incentiva um exercício desapiedado da competição individualista.
Também afirma que a revolução das comunicações tornou mais pequeno o planeta, facilitando a realização do ideal neoclássico de um mercado perfeito. Supõe que uma vez reduzidas as barreiras interpostas pelos estados nacionais, nada impedirá a circulação plena do capital, a transparência total e a assignação óptima dos recursos à escala mundial.
Nessas condições o comércio livre asseguraria o desenvolvimento, o erradicar os obstáculos que no passado obstruíram a mobilidade do capital e do trabalho. Os economistas mais ortodoxos (Barro, Sala J Martin, Williamson) e as suas instituições (FMI, Banco Mundial) recorrem a essa teoria da convergência global para justificar a sua promoção de política de abertura.
Mas essas afirmações não trazem qualquer novidade ao conhecido libreto dos rendimentos decrescentes no centro, que deveriam incentivar o deslocamento da periferia. Nesta hipótese de convergências entre economias atrasadas e adiantadas inspiram-se todas as teorias metropolitanas do desenvolvimento (20).
Durante décadas os neoclássicos ensaiaram uma «economia de convergência», para tentar corroborar o estreitamento das brechas estruturais entre o centro e a periferia. Mas com grande frequência esses estudos confundiram movimentos financeiros conjunturais com tendências a longo prazo.
E construíram também modelos muito arbitrários, atribuindo o segredo da ligação global ao comportamento virtuoso de certo factor educação, tecnologia, gestão). Isolavam esse elemento da dinâmica geral da acumulação procurando demonstrar a preeminência de tendências para a equivalência global. Mas esses processos só se verificaram na nebulosa de uma ideia absurda.
Perante as inconsistências desse procedimento alguns teóricos neoclássicos optaram por introduzir uma tese substituta de «convergência condicional». Postularam unicamente as ligações entre países com parâmetros tecnológicos, institucionais ou legais similares.
Mas com esta emenda diluíram as interrogações a dilucidar. Já não se sabe quem converge e qual seria a explicação desse processo. Ao introduzir uma restrição mais firme abandonaram de facto o pressuposto prévio. Recorreram a uma hipótese de «segundo melhor», para expor tautologias de convergências entre economias que já previamente se ligavam (21).
Raízes ideológicas regionais
O pensamento neoliberal contemporâneo combina fundamentos económicos neoclássicos com actualizações da historiografia liberal. Esta concepção nutriu a ideologia das classes dominantes latino-americanas desde a Independência até à crise de 1930. Recriou os mitos do colonialismo e retomou todos os supostos de superioridade do colonizador europeu sobre os indígenas e os escravos.
As versões mais básicas desta teoria repetiram os preconceitos iniciais propagados pelos conquistadores da América. Essas ideias concebiam o novo continente como uma região estruturalmente atrasada pela gravitação de imperativos climáticos adversos. Supunham que esses condicionamentos impediam aos nativos desenvolver a agricultura e o comércio. Por isso postulavam superar a barbárie regional com um apadrinhamento externo.
Durante três séculos esta concepção difundiu crenças de supremacia ocidental. Divulgou a imagem de um novo continente dotado de riquezas excepcionais e povoadores incapacitados para as aproveitar. A Europa ficou identificada com a introdução da civilização num continente previamente divorciado da história humana.
Com estas ideias colonialistas justificou-se a exploração imposta aos povos originários. O índio era sinónimo de selvagismo e a sua evangelização era apresentada como um correctivo desse primitivismo. Essa redenção incluía o trabalho servil nas minas e em todas as fazendas criadas a partir da usurpação das terras comunais.
Estes mesmos preceitos foram utilizados para introduzir escravos africanos nas regiões com populações originárias dizimadas. A brutalidade dessas práticas era disfarçada com mensagens de apadrinhamento tutelar sobre as raças inferiores (22).
O pensamento radical do século XIX embateu nessas teorias de glorificação colonial. Mas o liberalismo conservador das oligarquias crioulas retomou todos os diagnósticos de incapacidade dos nativos. Esses princípios foram utilizados pelos proprietários da terra e comerciantes locais para garantir o seu domínio. Com esses pilares geriram nações formalmente soberanas e economicamente dependentes do capitalismo britânico.
A derrota das correntes democrático-radicais ao concluir as guerras da Independência facilitou a consolidação dos eurocentristas. Apareceram novas explicações que atribuíam o subdesenvolvimento não apenas à gravitação prévia das culturas indígenas. Também foi impugnado o débil liberalismo da tradição espanhola.
Nesse contexto o desprezo pelo atraso indígena foi combinado com o questionamento ao proteccionismo hispânico. A fascinação pela cultura inglesa (e francesa) levou ao repúdio do identitário e à recusa da própria singularidade mestiça da região (23).
A idealização do Velho Continente reforçou-se em todos os planos. A Europa foi identificada com a racionalidade e o desenvolvimento da ciência. Com esta bagagem de crenças promoveu-se a incorporação dos países latino-americanos a um desenvolvimento guiado pela locomotiva europeia. Esses mesmos princípios alimentaram a ideologia positivista da modernização.
O liberalismo amoldou-se às necessidades das oligarquias agro-minerais. Justificou o aumento das suas fortunas e a instrumentação de um esquema de exportação de matérias-primas, em troca de manufacturas previstas pela indústria britânica.
As teorias livre-cambistas validaram o afogamento da estrutura produtiva local e facilitaram a apropriação oligárquica das rendas da região. Foram ideias muito persistentes até às primeiras décadas do Século XX. Representavam os interesses das minorias privilegiadas como conveniências comuns de toda a sociedade latino-americana.
Essas ideias perderam influência a partir da grande depressão, mas ressurgiram nos anos 50-60 através de novas teorias do desenvolvimento. A fascinação com o exemplo europeu foi seguida pelo deslumbramento com o modelo norte-americano. Mediante grandiloquentes chamados à modernização convocou-se para substituir os padrões rotineiros de conduta por novos valores de risco, investimentos e competência. Afirmou-se que essa mudança de costumes levaria a América Latina pela senda do desenvolvimento (24).
O salto da pobreza para o bem-estar, o consumo em grande escala e o trabalho especializado só precisava inserir a região na descolagem modernizadora. O teórico norte-americano Rostov aprovou os fundamentos desse guião. Utilizou também essa mensagem para conter a ameaça revolucionária. O novo programa era motorizado por assessores do Departamento de Estado que intervinham activamente na guerra-fria e difundiam as suas concepções como antídotos do comunismo (25).
Contradições de todo o género
Desde os anos 70-80 o neoliberalismo latino-americano amalgamou velhas tradições de elitismo regional como projecto de ofensiva thatcherista. A hostilidade ao estatismo (pré-colombiano, colonial, pós-independentista ou nacionalista) reapareceu com novos discursos de demonização do estado.
A crítica ao intervencionismo hispânico e à idiossincrasia passiva dos povos originários transformou-se em objecções à ausência de competência, em sociedades subordinadas ao despotismo dos funcionários. Ressurgiram os questionamentos à subordinação que a burocracia impõe à vida dos cidadãos.
Estas mensagens resumem o libreto neoliberal contemporâneo. Vão contra o estado omnipresente, que impede desenvolver os negócios cruzados pelos indivíduos. Procuram eliminar essa opressão estimulando as pessoas a ver-se por si mesmas, com o mesmo engenho e individualismo que florescem nos países que saem.
Mas esta visão omite que o Estado não é tão adverso aos capitalistas. Permite activamente o enriquecimento dos poderosos e auxilia o desamparo dos desprotegidos. Nunca abandona os dominadores à sua própria sorte, nem assegura a subsistência dos desamparados.
Os neoliberais atribuem o atraso latino-americano a certas estruturas culturais internas. Explicam séculos de paralisação regional com resignação perante o paternalismo estatal pela ausência de um talante competitivo anglo-saxão.
Mas esquecem-se de mencionar que o liberalismo foi a ideologia constitutiva das nações latino-americanas e que os seus parâmetros definiram o modelo agro-exportador prevalecente desde meados do século XIX. Ao atribuir a falta de progresso à inferioridade cultural da zona, não explicam como persistiu essa taxa em sociedades regidas por princípios liberais. Supõem que as elites encarnaram esse espírito mercantil perante maiorias populares afectadas pela vertigem estatista.
A versão actual desta ideia aristocrática concentra-se na crítica ao vírus do populismo. A influência desta enfermidade é explicada pela conduta facilitista que os funcionários adoptam, para assegurar o apoio das suas clientelas eleitorais. Impõem uma dependência dos votantes para o estado que frustra a preeminência do mercado e recria a estagnação.
Mas também aqui omitem recordar os grupos capitalistas beneficiados por este tipo de administração. Nesse ocultamento fundamenta-se o palavreado hipócrita que usam contra o gigantismo estatal. Propõem erradicar essa atrofia mediante a instalação de um «estado mínimo», que se desenvolveria melhorando a eficiência do gasto e a eficácia dos funcionários (26).
Esta mensagem esquece que o neoliberalismo já arrasta várias décadas de administração estatal e que em nenhum lado conseguiu alcançar essa meta de eficácia. Às vezes justificam esse fracasso afirmando que a maioria das experiências governamentais «não têm sido genuinamente liberais». Contrastam o vivido com um ideal de pureza mercantil-competitiva que não existe em nenhuma parte do mundo.
Mas o mais curioso desse argumento é a sua impugnação complementaria do socialismo. Afirmam que esse projecto é uma «utopia irrealizável» quando o seu próprio modelo navega na fantasia.
O neoliberalismo actual retoma também a teoria da modernização como explicação das dificuldades enfrentadas pelo empresariado latino-americano para incitar às suas potencialidades. Atribui essa frustração à preeminência de padrões culturais tradicionais, que obstruem o surgimento dos valores característicos do empreendedor contemporâneo. Calculam que essas capacidades empresariais estão presentes, mas não conseguem emergir no agoniante clima de estatismo latino-americano (27).
Uma idealização extrema deste individualismo empresário foi introduzida nas últimas décadas por talibãs do neoliberalismo como Carlos Alberto Montaner, Martin Krause e especialmente Hernando de Soto. Apresentam os empobrecidos como exemplos de ressurreição da iniciativa privada. Afirmam que os comerciantes precarizados do circuito informal começaram a libertar a economia do estatismo, com acções de nacionalidade mercantil em universos de genuína competência.
Mas esta exaltação dos desamparados como expoentes do ideal capitalista constitui uma verdadeira confissão dos resultados do neoliberalismo. Este esquema expropria os trabalhadores, expulsa os campesinos das suas terras e empobrece as classes médias até desembocar na miséria de que sofre a América Latina.
O mais insólito da argumentação neoliberal é o seu enaltecimento desses efeitos. Embora atribua à precarização o intervencionismo estatal, é evidente que a informalidade é consequência directa de um modelo que destrói empregos, mediante privatizações e aberturas comerciais. Os seus artífices idealizam as desgraças causadas pela flexibilização laboral.
As caricaturas dos empobrecidos como agentes transmissores da mão invisível tiveram um certo eco no início do neoliberalismo. Mas perderam influência na última década, à medida que o empobrecimento potenciou a fractura social, massificou a delinquência e acrescentou as tensões da marginalidade.
Este cenário terrível induz a maioria dos neoliberais a substituir os elogios da informalidade pela promoção de programas maciços de assistencialismo. Com teorias de auxílios transitórios («até que o mercado crie emprego privado») incluíram este tipo de gastos sociais nas suas políticas de governo. As administrações de direita destinam importantes derrogações de orçamentos para conter a rebelião que o seu modelo gera.
Uma ideologia da dominação
A idealização do empresário é um pilar da vertente austríaca da economia neoclássica, que se firmou com Menger e Bohm Bawerk e garantiu com Von Mises e Hayek. As suas vozes propiciam a ampliação das desigualdades sociais, a subordinação da democracia à propriedade e o reforço da supremacia irrestrita do mercado. Reivindicam modalidades extremas de competência, argumentando que incentivam o consumidor e reforçam a inovação do empresário.
A diferença da corrente walrasiana reconhece o carácter incerto da inversão, a imperfeição da racionalidade individual e a fragilidade das preferências dos consumidores. Mas não deduzem destas dificuldades nenhuma proposta de regulação dos mercados. Pelo contrário, propõem libertar o jogo da oferta e a demanda de qualquer interferência, sublinhando o carácter benéfico da ordem mercantil e o efeito positivo do darwinismo social.
Com este tipo de concepções, o neoliberalismo desenvolveu uma influente ideologia em todos os sentidos do termo. Traz ideias que naturalizam a opressão para orientar a acção dos dominadores. Como crença, cosmovisão ou legitimação do grupo dominante, o neoliberalismo constitui um credo de grande peso para o funcionamento actual do capitalismo (28).
É uma ideologia com fundamentos racionais que por sua vez propaga enganos sistemáticos. Promove ilusões no reino do mercado e na existência de oportunidades para todos os indivíduos. Oculta a preeminência das grandes empresas e o estrutural da exploração. Difunde o mito da obstrução estatista do desenvolvimento latino-americano, omitindo a dependência e a inserção primarizada da região no mercado mundial.
O neoliberalismo expande essas ideias ao serviço das classes dominantes. Sintetiza as conveniências dos grupos privilegiados da América Latina. No passado expressava os programas dos proprietários de terras exportadores e na actualidade canaliza as demandas dos grandes bancos e as corporações agro-industriais com negócios internacionalizados.
As ideias liberais são crenças colectivas propagadas pelas classes capitalistas. Formam parte do pensamento latino-americano desde que essa cosmovisão emergiu para ligar as minorias opressoras. Nas últimas décadas provê todos os argumentos que utiliza o establishment para justificar a sua primazia. Os pilares dessas crenças (modernização, progresso, imitação do Ocidente) incidem na subjectividade dos indivíduos educados nas regras da mitologia liberal.
O grau de penetração dessas ideias entre os oprimidos é um tema de grande controvérsia. Embora o liberalismo tenha tido momentos de grande influência social, foi sempre uma concepção explicitamente hostil aos interesses, tradições e desejos dos explorados. Por essa razão nunca foi plenamente interiorizada por este sector. Conseguiu certa incidência entre fins do século XIX e 1930, mas ficou estruturalmente relegado com a industrialização de pós-guerra e a expansão do nacionalismo.
Voltou nas últimas décadas de vaga neoliberal mas sem lançar raízes na maioria da população. As resistências e vitórias parciais conseguidas contra a ofensiva de direita limitaram a gravitação dos seus conceitos, abonando as teorias que remarcam a penetração das ideologias dominantes entre os sectores populares (29).
Mas o liberalismo tradicional não é o único formato dessa concepção. Também existem outras modalidades mais sofisticadas que requerem avaliações específicas. Estas vertentes conformam o social-liberalismo que analisamos de seguida.
Resumo
Na América Latina o neoliberalismo começou antes e enfrentou maiores resistências. É uma prática reaccionária, um pensamento conservador e um modelo de acumulação baseado em agressões aos trabalhadores, num marco de maior internacionalização do capital.
Houve uma etapa inicial do ajuste e outra fase posterior de privatizações durante as ditaduras e as transições posteriores. A aplicação do esquema neoclássico acentuou os desequilíbrios financeiros, cambiais e produtivos tradicionais e repetiu os socorros estatais aos capitalistas à custa do erário público.
Ao contrário de outras regiões o neoliberalismo latino-americano ficou afectado pelo impacto das sublevações populares. Mantém o programa de direita, mas reduz o triunfalismo, atenuou as suas ambições e aceitou certa intervenção estatal. Pode ser visto como etapa do capitalismo, estratégia de comércio livre, política económica e governo de direita. Para definir que se encontra em ofensiva ou em regressão há que distinguir essas quatro opções.
O liberalismo postula uma inserção imaginária natural no mercado mundial e reproduz o subdesenvolvimento que gera a exportação primária. As brechas internacionais de produtividade desmentem as fantasias de convergência entre economias avançadas e periféricas.
O neoliberalismo herda velhas teorias de inferioridade dos nativos, atraso cultural hispano-americano e supremacia do Ocidente. Retoma os mitos positivistas baseados na cópia do capitalismo avançado. Luta contra a ingerência do governo estatal, ocultando os benefícios que obtêm os capitalistas e não explica a continuidade dessa intervenção depois de tantos governos pró-mercado. É absurda a sua apresentação da informalidade laboral como uma ressurreição da competência empresarial.
Como crença, programa ou cosmovisão o neoliberalismo é a principal ideologia actual das classes dominantes. Não foi absorvida pelos oprimidos.

* Economista, investigador, Professor. Membro do EDI (Economista de Esquerda). A sua página web és:www.lahaine.org/katz
(2) Ver: Hirsch, Joaquim «Globalização do capital e a transformação dos sistemas de estado». Cuadernos del Sur, 28, Maio 1999.
(3) Ver balanço em: Anderson, Perry. «Balanço do neoliberalismo: lições para a esquerda». O Rodaballo n.o 3, Verão 1995-96, Buenos Aires, Anderson Perry, «Neoliberalismo: um balanço provisório», A trama do neoliberalismo, Mercado, crise e exclusão social, CLACSO, Buenos Aires, Argentina. 2003. Anderson Perry. O Velho Novo Mundo, Verso, Londres, 2009, (pág. 47-79).
(4) Ver: Harvey, David. «O neoliberalismo como projecto de classe» Vientosur. Info/08/04/2013. Harvey, David Breve história do neoliberalismo, Oxford University Press, Nova Iorque, 2005 (pág. 1-39, 152-183).
(5) A nossa visão da etapa em: Katz Cláudio, «Transformações da era neoliberal», Realidade Económica. N. 284, Maio-Junho 2014, Buenos Aires.
(6) Ver: Nahon, Cecília Rodrigues Enriquez, Corina; Schorr, Martin. «O pensamento latino-americano no campo do desenvolvimento do subdesenvolvimento: trajectórias, rupturas e continuidades», 2006,www.idaes.edu.ar/papelesde trabajo/páginas
(7) Ver: Olivera, Margarita. «As teorias do desenvolvimento do pós-guerra ao novo milénio», em Globalização, dependência e crise económica. FIM, Málaga, 2010, (pp. 26-27).
(8)Ver: Vidal, Gregório; Guillen, Arturo. «A necessidade de construir o desenvolvimento na América Latina» Repensar a teoria do desenvolvimento num contexto de globalização. CLACSO, 2007, Buenos Aires.
(9) Ver: Guillen, Arturo. «A teoria latino-americana do desenvolvimento». Repensar a teoria do desenvolvimento num contexto de globalização, CLACSO, 2007, Buenos Aires.
(10) O nosso balanço em Katz, Cláudio. O novo desenho da América Latina, Alca, Mercosur e Alba. Edições Luxemburgo, Buenos Aires, 2008 (pág. 9-35).
(11) A nossa visão em: Katz, Cláudio, As disjuntivas da esquerda na América Latina, Edições Luxemburgo, Buenos Aires, 2008 (pág. 9-27).
(12) Ver: Herrera, Remy, «O Renascimento neoliberal da economia do desenvolvimento», Globalização, dependência e crise económica. FIM, Málaga, 2010, (pp.23-24).
(13) Ver: Burkett, P. Hart-Landsberg, M. «Uma crítica das teorias pescadas de desenvolvimento», Jornal da Ásia Contemporânea, 33 (3), 2003.
(14) Ver Hagman, Itai. «Negoceia-se em silêncio um novo ALCA» disponível em:ww.rccl.net/globalizacion/13/6/2014.
(15) Ver: León, Magdalena. «Equador: Acordo com a União Europeia: Uma capitulação inevitável?»alainet.org/active, 11/7/2014, Elias, António: «Porque pediu o Uruguai para entrar no TISA? Alainet.org/active, 11/7/2014.
(16) Ver: Salama, Pierre. «As novas causas da pobreza na América Latina», Ciclos n. 16, 2.o semestre 1998, Buenos Aires. Martins, Carlos Alberto. «Neoliberalismo e desenvolvimento na América Latina», em A economia mundial e a América Latina, CLACSO, 2005, Buenos Aires.
(17) Ver: Bairoch, Paul. Mitos e paradoxos da história económica. A descoberta, 1999, (pp.7, 227-228, 234).
(18) Ver: Osório, Jaime. Exploração e actualidade da revolução. ITACA-UAM, México, 2009, (pág. 37-40).
(19) Ver: Lipietz, Alain. «Para um proteccionismo universalista», Fevereiro 2013, lipietz.net
(20) Ver: Weeks, John. «A expansão de capital e desenvolvimento desigual à escala mundial» Capital e Classe, n. 74, 2001. Também: Arrighi, Giovanni; Korzeniewicz, Roberto; Consiglio, David; Moran, Timothy, «zonas modelo da economia mundial» Encontro Anual da associação Sociológica Americana, 1996.
(21) Ver: Moncayo, Jimenez, Edgard. «O debate sobre a convergência económica internacional e inter-regional: ideias teóricas e evidência empírica», Economia e Desenvolvimento, V3 N2 Setembro 2004.
(22) Ver: Charolla, Arturo, As imagens da América no marxismo, Buenos Aires, 2005, Prometeo (pág. 42-53, 55-56, 72-74).
(23) Ver: Deves Valdês, Eduardo. O pensamento latino-americano no século XX: entre a modernização e a identidade, Tomo III, Biblos, Buenos Aires, 2005, (pág. 47-53).
(24) Ver: Marini, Ruy Mauro. «A sociologia latino-americana: origem e perspectivas» Processo e tendências da globalização capitalista, CLACSO-Prometeo, Buenos Aires, 2007.
(25) Ver Bustelo, Pablo; Teorias contemporâneas do desenvolvimento económico, Sintesis, Madrid, 1998, (pp. 139-143).
(26) Um exemplo em: Mols, Manfred. «Sobre o estado na América Latina», O estado na América Latina, Ciedla, Buenos Aires, 1995.
(27) Ver descrição em: Reyes Giovanni, E, «Principais teorias sobre desenvolvimento económico e social»www.ucm.es/info/nomadas. 2001
(28) Ver: Egleton, Terry. Ideologia, Paidos, Barcelona, 1997, (pág. 19-57, 275-279).
(29) Ver: Abercrombie, Nicholas; Hill, Stephen; Turner Bryan, S. A tese da ideologia dominante, século XXI, Madrid, 1987 (cap. 6). Também: Therborn, Goran: A ideologia do poder e o poder da ideologia. Século XXI, Madrid 1987, (cap. 4, 5).
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