sábado, 1 de junho de 2013

"Narconovela" é alvo de críticas na Colômbia por retratar paramilitares

"Os três Cains" narra a história dos irmãos Castaño, conhecidos por fundarem grupos responsáveis por milhares de mortes

Enquanto em Cuba, avança o processo de paz entre governo de Juan Manuel Santos e as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), é uma novela que domina o debate sobre o longo conflito civil na Colômbia. Os três Cains, do canal RCN, narra a história dos três irmãos Castaño, cujas vidas estão profundamente ligadas ao surgimento do narcotráfico e do paramilitarismo no país.

Propaganda de "Os três Cains":


Fidel e Carlos foram treinados nas artes militares pelo israelense Yair Klein nos anos 1980, quando o Cartel de Medellín, chefiado por Pablo Escobar e Rodríguez Gacha, decidiu criar uma milícia para se proteger dos guerrilheiros. O primeiro fundou as ACCU (Autodefesas Camponesas de Córdoba e Urabá), um dos primeiros e mais violentos grupos paramilitares que, logo nos anos 1990, se juntou às AUC (Autodefesas Unidas da Colômbi), organização guarda-chuva que reunia todos os grupos paramilitares do país sob a tutela de seu criador, Carlos.

Divulgação
As AUC foram responsáveis pelo mais alto número de massacres, assassinatos e desaparecimentos na história do continente. Vicente, o irmão do meio, se juntou, em uma segunda fase às AUC, apoiado pelos grupos mais próximos ao narcotráfico. Fidel e Carlos logo acabaram assassinados, o último justamente por Vicente, hoje fugitivo da justiça e que, segundo testemunhas, também estaria morto.
[Ator que interpreta Carlos Castaño, um dos mais temidos paramilitares da Colômbia, já falecido]

Mas, pela recente repercussão do tema, a Colômbia não está pronta para contar essa história. María Victoria Uribe, uma das mais reconhecidas antropólogas colombianas e especialista no conflito desde a época da violência dos anos 1940, é uma das maiores críticas de Os três Cains.

Para ela, a série não tem sensibilidade com as vítimas do paramilitarismo e criticou o autor, Gustavo Bolívar, por apresentá-las usando diversos lugares comuns e como sujeitos passivos, quase sombras sem protagonismo. “Não estamos prontos para contar esta história porque ela é muito recente, as feridas estão abertas e é uma falta de respeito com as vítimas”, afirma.

Uribe estende a crítica também à direção do canal e seu compromisso com o país: “Me assusta a falta de sensibilidade diante do momento vivido pela Colômbia, um país cansado da guerra, que viveu 60 anos de violência e que agora está negociando com as FARC. É incrível que, nesse cenário, o RCN continue fazendo apologia ao delito, como se estivesse descolado da realidade."

Bolívar se caracterizou por ser um autor qualificado tanto como controverso como brilhante desde seus primeiros trabalhos. Em Sin tetas no hay paraíso (Sem tetas não há paraíso), ele conta a vida de uma jovem de 14 anos que segue os passos das amigas para conseguir namorados traquetos (narcotraficantes) e, para isso, põe silicone nos seios; ou Pandillas, guerra y paz (Gangues, guerra e paz) e El Capo (O chefão), que seguem no tema das narconovelas.

Propaganda de "Sem tetas não há paraíso":


O que suscita mais críticas da audiência é que o roteiro de Os três Cains quase justifica a atuação dos três irmãos Castaño, ao apresenta-los como vítimas da guerrilha quando, ainda jovens, sofrem com o sequestro e assassinato do pai pelas FARC.

Bolívar diz que está simplesmente apresentando os fatos e que “contar que as FARC sequestravam pecuaristas não significa justificar o paramilitarismo”. Segundo o autor, o país está em um nível de polarização tão grande, que é sempre delicado abordar o tema. “Além disso, é uma novela de 75 capítulos e foram exibidos apenas 10, então peço que vocês vejam mais adiante, quando começarmos a apresentar os personagens positivos e as vítimas”. Mas, enquanto isso, muitas empresas retiraram patrocínio em meio à polêmica, apesar dos altos índices de audiência.
Debate

Omar Rincón, crítico de televisão e diretor do mestrado em jornalismo da Universidade dos Andes, afirma que a posição defensiva de Bolívar é parte do problema. Em Os três Cains existe, segundo ele, um erro de conceito muito grande, mas muito comum a todas às controversas novelas sobre narcos e paramilitares, especialmente Pablo Escobar, el patrón del mal (Pablo Escobar, o patrono do mal, exibida pelo canal concorrente Caracol Televisión).

Pablo Escobar, el patrón del mal:


“Em uma telenovela, para que haja audiência, é preciso haver identificação com os personagens e essa conexão se cria nos primeiros capítulos, quando os protagonistas são os maus. Então, quando chegarem os bons, já não haverá como se apaixonar por eles. Do ponto de vista dramatológico, seria diferente se, desde o início, houvesse todos os protagonistas, com histórias paralelas”, defende.

Para Rincón, o ponto central do debate é qual tipo de país e que tipo de memória os canais querem criar. De acordo com ele, Caracol e RCN não estão assumindo um papel de prestar um serviço público frente ao tema da memória histórica. Segundo Uribe, isso se agrava porque “a novela não é apresentada como ficção, mas uma pretensão de reconstruir a história, mal contada. Teria sido melhor se fosse ficção, mas, diferente disso, fica na metade do caminho. E os que se destacam são os criminosos, também porque os antagonistas são os guerrilheiros e as pessoas, os colombianos, as vítimas, desaparecem”.

Segundo o colunista do Semana.com Juan Diego Restrepo, que desencadeou o debate no país, tudo isso não é casual. “A RCN vem tentando insensibilizar os cidadãos, não apenas com essa novela, mas ao longo dos oito anos de governo de Álvaro Uribe. O canal tem falta de crítica e está curvado diante do poder. A novela reflete essa concepção ideológica. E é por isso que existe um rechaço por parte dos cidadãos diante da RCN”.

A antropóloga concorda: “Se observamos outros países que passaram por conflitos e guerras que deixaram dor e sofrimento, se percebe que os canais de televisão se sintonizam com a história recente. Na Colômbia, por outro lado, há um quadro de esquizofrenia. É como se fosse outro país, absolutamente nada do que se passou os afeta. Se não, não exibiriam essas novelas, que alegam ter um sentido pedagógico. Isso é irresponsável e insensível”.
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