Ermínia Maricato
– Eu quero agradecer à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, pela
cessão do auditório, agradecer à Comissão de Pós-Graduação, pela
tradução simultânea, e agradecer à Boitempo, por ter patrocinado a vinda
do David Harvey. Queremos agradecer, principalmente, ao Harvey, pela
disponibilidade. Ele estava na Argentina – vai voltar para a Argentina –
e se dispôs a fazer três conferências no Brasil. Ele é, desde 2001,
professor de Antropologia do Curso de Pós-Graduação da City University of New York; foi também professor de Geografia nas universidades de John Hopkins e Oxford. Seu livro A condição pós-moderna, editado em português pela Editora Loyola, foi apontado pelo The Independent como um dos 50 trabalhos mais importantes de não ficção publicados desde a 2ª Guerra Mundial. Em português, nós temos Justiça social e a cidade, de 1980, pela Hucitec, A condição pós-moderna é de 1993, pela Loyola, Espaços de esperança, de 2004, pela Loyola, O novo imperialismo, 2004, pela Loyola, A produção capitalista do espaço, que é da Annablume, de 2005, O enigma do capital, que
é o livro que está sendo lançado hoje e sobre o qual ele vai fazer a
exposição. Portanto estamos diante de um intelectual que tem uma
produção acadêmica para Lattes nenhum botar defeito. Mas ele tem
uma virtude muito maior que esta, ele é um ativista anticapitalista. E
eu quero dizer, nesta universidade, que esse engajamento não diminui o
valor da produção acadêmica. Muito ao contrário, seu engajamento dá
consistência e originalidade a seu trabalho. O engajamento dos que
buscam a justiça social é próprio de pessoas que são generosas e que
desejam o pleno desenvolvimento da sociedade, da humanidade e de cada
indivíduo. É preciso conhecer para transformar, e é esse o trabalho que o
Harvey faz. Ele acredita que é possível transformar, e que é preciso
conhecer profundamente, pra fazer essa transformação. E ele vai falar,
então, sobre as crises do capitalismo. Eu quero acrescentar mais uma
coisinha, para que o Harvey entenda nossa satisfação em tê-lo aqui e
para que ele também entenda a importância de estar aqui. Além de
importantes intelectuais de esquerda e ativistas políticos que são da
nossa geração, nós temos uma moçada aqui que crescentemente se engaja
nesse novo ciclo de lutas sociais no Brasil. Essa moçada já percebeu que
as disputas eleitorais não devem ser ignoradas, mas certamente não nos
levarão ao mundo que queremos, e que, em países como o Brasil, o
capitalismo tira vantagens das especificidades, como as heranças
escravocratas e o patrimonialismo. Agora somos emergentes, não nos
deixemos enganar. Companheiros das lutas antigas e das novas lutas,
vamos ouvir nosso grande convidado. (…) Agora, para aqueles que disseram, alguns anos atrás, que Marx estava morto, com a palavra, David Harvey.
***
David Harvey – É um grande privilégio estar aqui, eu gostaria de ter públicos como este em Nova Iorque, seria ótimo. A ideia geral do livro O enigma do capital foi
pegar a teoria da crise, como eu a considerei ao longo dos anos, e
tentar explicar o que estava acontecendo em torno de nós, com relação às
compreensões teóricas. Uma das compreensões que surgiu, no sentido de
trazer a teoria e juntar a teoria e a história, foi o reconhecimento de
que o capital nunca resolve suas tendências de crise, ele simplesmente
as move de lugar. E ele as move num sentido duplo, ele as move de um
tipo de problema para outro. Por exemplo, pode haver problemas no
mercado de trabalho, uma crise do poder do trabalho com relação ao
capital, que depois é resolvida pela financeirização ou outras medidas,
que tiram o poder do trabalho somente para deixá-lo com mais problemas
no mercado. Há muitas maneiras diferentes de como a crise pode ser
apresentada, e eu acho que o que nós estamos vendo, nos últimos cinco
anos, tem sido um deslocamento, cada vez mais rápido, de um setor da
economia para outro. Por exemplo, começa no mundo do consumo, com
problemas de habitação, depois vai para o setor financeiro, e, depois do
setor financeiro, para uma crise de dívida soberana de alguns
estados-nação. E depois, uma maneira de como essa crise pode ser
transferida, é de volta para o setor bancário, se as dívidas soberanas
não puderem ser resolvidas. Mas, no lugar de fazer isso, a gente obtém
uma política de austeridade, que empurra a crise para as pessoas, para o
povo. Então, vocês veem esse movimento da crise ao longo do tempo. Mas
ela também está se movendo no sentido geográfico, e eu gostaria de falar
especialmente sobre isso, esta noite. Porque uma conexão que falta, na
compreensão desta crise, é a maneira como ela está arraigada à história
da urbanização e do desenvolvimento urbano. Isso é algo que me interessa
particularmente, dado meu interesse na urbanização, e isso traz algumas
questões políticas, a que eu vou chegar, assim que possível.
A crise,
então, começou – no sentido de que ela tem um começo, porque ela está se
mexendo o tempo todo –, o ponto inicial desta crise foi,
essencialmente, a quebra do mercado de habitação, mas não foi uma quebra
mundial, ela estava altamente localizada. Enquanto ela estava nos EUA,
ela não estava em todas as partes dos EUA, ela estava altamente
concentrada no sul da Califórnia, Nevada, Arizona e na Flórida, e o que
aconteceu nessas áreas é que você tem um tipo peculiar de habitação, de
bolha de habitação, que se desenvolveu e que tinha tudo a ver com a
estrutura peculiar de habitação como um ativo, uma mercadoria, e o papel
do capital financeiro na criação de habitação. Na verdade, o que os
financistas fazem é emprestar dinheiro para os empreendedores
construírem casas, mas depois eles emprestam dinheiro para os
consumidores comprarem as casas, então, na realidade, as instituições
financeiras controlam a oferta e a demanda de casas. Então, a construção
de casas se torna totalmente dependente do fluxo de fundos que vai para
a construção e do fluxo de fundos que vai para o consumo. E, o tempo
todo, as instituições financeiras estão preparadas para bombear dinheiro
para os dois lados, porque a construção ocorre cada vez mais
rapidamente, e o valor das habitações sobe cada vez mais.
Então, a
mecânica da bolha é razoavelmente simples, deste ponto de vista. Mas há
também a questão de pra quem você empresta o dinheiro. Geralmente, as
instituições financeiras dizem “A gente só empresta dinheiro pra pessoas
que tenham bom crédito”. Então, você precisa provar que tem bom
crédito. Mas o que aconteceu, em 1995, foi que o presidente Bill Clinton
– e isso eu acho muito importante reconhecer: que começou com o
presidente Clinton –, ele tomou uma iniciativa chamada Habitação Nacional
e, nessa iniciativa, o que eles fizeram foi tentar dizer “Nós queremos
que pessoas de baixa renda também tenham acesso à propriedade de casas, e
o que isso significa é que nós queremos relaxar as aquisições de
crédito”. E muitas instituições disseram “Isso parece ótimo, podemos
ganhar muito dinheiro assim”. Então, de repente, de 1995 em diante, um
grande fluxo de dinheiro começou a ir para as pessoas, com taxas de
crédito cada vez mais baixas.
Tudo isso
parou em 1998, porque houve uma grande crise em 1998, com a falência da
Enron, da administração de capital em longo prazo. Então, tudo parou em
1998, mas em 2001, com o colapso da bolsa de valores, as pessoas
começaram a dizer “O único lugar que nós temos sobrando para colocar
seguramente o nosso excesso de capital é a habitação”. Então, foi o
começo de um grande fluxo de dinheiro na habitação, e também houve um
grande fluxo de dinheiro, que depois foi desviado por várias
organizações, instituições financeiras, que foram particularmente ativas
em alguns mercados de habitação, que construíram condomínios na Flórida
e no sudoeste dos Estados Unidos. Então, se vocês quiserem… isso foi
muito poderoso e continuou sendo mantido pela Reserva Federal, que sabia
o que estava acontecendo, mas, por razões políticas, não fez nada. Ou
então eles eram totalmente burros, porque todo mundo já sabia, em 2003,
que o mercado de habitação era instável. O que aconteceu foi que o
Greenspan, que era o chefe da Reserva Federal, decidiu que queria que a
bolha continuasse. Então, ele manteve os juros muito baixos. Quer dizer,
por razões políticas, a bolha continuou, sendo que a habitação era o
que mais absorvia o excesso de capital.
Esta
história de a habitação ser central na formação da crise e na resolução
da crise nunca foi profundamente investigada. Só recentemente algumas
das instituições originais da Reserva Federal começaram a observar mais
cuidadosamente essa questão, e uma das conclusões a que eles chegaram,
há pouco tempo, foi que os americanos saem da crise construindo casas e
preenchendo-as com coisas. Esta é uma ideia muito interessante, ela
basicamente diz “O capital excessivo: eu não sei onde investi-lo, então,
tudo bem, eu vou na criação de habitações”. Você constrói uma casa e
precisa comprar os móveis, as cortinas, tudo o que você precisa, e, se
você constrói casas de um certo tipo, num estilo de consumo, precisa
combinar com isso. Quando você olha os dados, historicamente, os EUA,
nos anos 30, tiveram uma situação de depressão muito difícil, em que a
construção foi muito baixa, e a propriedade também era muito baixa.
Então, nos anos 30, muitas instituições foram estabelecidas, para tentar
criar a possibilidade de sair da crise da construção, e da crise geral
dos anos 30, construindo casas e enchendo-as de coisas. Isso funcionou
por algum tempo, a 2ª Guerra Mundial resolveu o problema dos anos 30,
mas, em 1945, você tinha o problema seguinte: onde é que você iria
colocar todo o excesso de capital que existia nos EUA? Como todo esse
excesso, essa produção que fora colocada no esforço de guerra, seria
utilizado? E, além disso, como todos os soldados que tinham ido lutar e
voltaram para os EUA iriam arrumar emprego?
Essa foi uma
situação muito perigosa nos EUA, e esta situação perigosa encontrou
duas formas: a econômica e a política, ou seja, a repressão de qualquer
discussão da política de esquerda. Nós tivemos algo chamado macarthismo,
que era uma mão de bruxa com qualquer pessoa que tivesse visões de
esquerda; eram tirados dos sindicatos, considerados antipatrióticos,
antiamericanos, e havia um comitê do congresso americano chamado A casa das atividades antiamericanas;
em outras palavras, ser de esquerda era ser antiamericano. Então, se
você estivesse ativamente na esquerda, por definição você era
antiamericano e não pertencia aos EUA, e eram necessárias medidas para
deportá-lo. Isto foi uma repressão política sobre todas as formas de
pensamento de esquerda, e se tornou impossível ler Karl Marx nas
universidades, quando Karl Marx foi demonizado, e a Guerra Fria também
ajudou em tudo isso.
Suburbanização
Mas isto não
resolveu o problema econômico, o problema econômico foi resolvido com a
construção de casas e preenchendo-as com coisas. Houve um grande
debate, em 1947/48, com relação a qual seria o futuro da urbanização nos
EUA, e houve uma visão de um futuro urbano – que tinha a ver com a
construção de cidades justas e compostas –, que seria desenvolvida em
alguns círculos intelectuais, que era totalmente ignorada pelo impulso
de construir subúrbios, ou seja, a suburbanização foi uma das grandes
maneiras pelas quais os EUA saíram da grande depressão dos anos 30,
suburbanizando, nos anos 50 e 60. Isto é, na verdade, um dado muito
interessante: antes da 2ª Guerra Mundial, o número de unidades
habitacionais construídas nos EUA flutuava entre 300 e 500 mil por ano,
no máximo; depois de 1945, ele nunca ficou abaixo de 1 milhão por ano,
em muitos anos, ele até chegou a 2 milhões de unidades habitacionais por
ano. Esta é uma absorção imensa de excesso de capital, mas não é
somente a habitação, há também as estradas, e o fato de que você precisa
de um carro, pelo menos um, talvez dois. O que eu gosto de dizer é que,
se você mora no subúrbio, você precisa de gramados, e, se você fosse
bem esperto, em 1947, você construiria uma fábrica de cortador de
gramas, porque todo mundo no subúrbio tem um cortador de gramas, e todo
domingo eles ficam fazendo vrum-vrum. Era um estilo de
vida, era uma mudança de estilo de vida, que também estava ligada à
absorção de excesso de capital pela suburbanização. E, na verdade, se
vocês analisarem os dados, verão, nos anos 30, que ele fica flutuando;
de repente, ele sobe, quando começa a construção, e somente em 2008 ele
começa a descer, e a habitação começa a voltar para os níveis de antes
da 2ª Guerra. Eles ainda não estão lá, mas não tem nenhum sinal de
ressurreição dos níveis de construção nos EUA, ou seja, os EUA, que
tipicamente saem das suas dificuldades construindo casas e enchendo-as
com coisas, não podem mais fazer isso, e, se você não pode fazer isso
porque tem um excesso de casa e excesso de coisas, então, você tem um
problema realmente sério nesse país.
Uma crise global
Quando eu
mencionei isso como um problema urbano, geográfico, – porque tinha a ver
com a urbanização dos EUA, que foi tão crítica,– eu também quis dizer
um problema geográfico numa outra escala. Por exemplo, a quebra da
habitação, que estava localizada no sudoeste dos EUA, na Flórida, afetou
muitas instituições financeiras. Em outras palavras, ela mudou deste
campo da urbanização para os centros financeiros do mundo,
particularmente Nova Iorque e Londres. E, no nível em que todo o
financiamento de hipotecas foi reestruturado e reorganizado, de forma a
juntá-los, e essas obrigações colateralizadas de dívida (CDOs),
esses instrumentos, esse tipo de instrumentos malucos, as hipotecas
foram passadas para uma outra pessoa. Então, em um certo sentido, você
tem a geração do que pode ser chamado de ativo tóxico, que foi repassado
para outras pessoas, nessas estruturas de investimento diferentes, e
qualquer pessoa que entrasse nisso, quando lhe diziam que era seguro
comprar casas, acabou perdendo dinheiro. Foi pra Nova Iorque, depois
para Londres, porque aí é que estavam todos os ativos. Então, poderia ir
pra qualquer lugar do mundo em que houvesse uma pessoa burra o
suficiente para comprar esses investimentos. Isso incluía muitos bancos
europeus, muitos governos, no mundo inteiro.
Por exemplo,
havia uma prefeitura no norte da Noruega que foi convencida a investir
num desses instrumentos, e, de repente, eles descobriram que não valia
nada, e como tinham investido todo seu dinheiro, não podiam mais pagar
seus policiais, seus empregados, não podiam pagar mais nada. Então,
qualquer lugar que tenha sido burro o suficiente para investir nisso,
foi pego, mas muitas partes do mundo não foram tão burras. Eu não acho
que os bancos no Brasil investiram, eu sei que os bancos no Canadá, por
exemplo, não investiram, então, isso não foi um problema no sistema
bancário canadense, os bancos chineses certamente não investiram. Então,
foram somente algumas partes do mundo, e é muito interessante observar
onde ficam esses lugares que foram idiotas o suficiente para investir, e
eles foram golpeados.
Depois, veio
a segunda onda de problemas: com o colapso do mercado de habitação,
também colapsou o consumo nos EUA. Isso aconteceu de duas maneiras
diferentes: em primeiro lugar, foi porque a confiança terminou e,
depois, na verdade, muitas pessoas estavam usando a habitação quase como
um banco privado. E a maneira como isso era feito é a seguinte: por
exemplo, você comprava uma casa de 200 mil dólares, hipotecava por 200
mil dólares e, dois anos depois, valia 300 mil dólares. Então, você
hipotecava de novo por 300 mil dólares, ou seja, você tinha 100 mil
dólares no bolso. Dois terços das hipotecas que foram emitidas durante
2006/07 foram refinanciados, ou seja, pessoas que estavam retirando
fundos das suas casas.
Mas por que
elas estavam extraindo dinheiro de suas casas? Algumas pessoas diriam
que elas eram simplesmente ambiciosas, mas não é só isso, alguns fizeram
isso porque precisavam, e porque os salários estavam sendo reprimidos,
ou seja, se você não consegue obter dinheiro através do salário, você
obtém deste jeito. Mas isso não funcionou mais, o consumo acabou, e
então, houve um colapso do mercado de consumo em 2008.
China
À medida que
o mercado de consumo entrou em colapso, todos os países que estavam
exportando para os EUA se encontraram em uma dificuldade considerável. A
China, que se apoia muito pesadamente no mercado de consumo americano,
perdeu 13 milhões de empregos em três meses, desde o final de 2008 até o
começo de 2009. E depois houve um relatório, no final de 2009, que
estimou que a perda líquida de trabalho, em todo o mundo, foi muito
maior do que a que tinha ocorrido na China.
Então, de
uma forma ou de outra, durante 2009, os chineses criarem 27 milhões de
empregos, é uma coisa imensa. Agora, quando você vai e faz a pergunta:
onde esses empregos foram criados? Num certo nível, o mercado de consumo
reviveu, e alguns empregos voltaram, mas o grande empuxo na China foi
dizer “Nós precisamos absorver esses trabalhadores e criar empregos pelo
investimento em infraestrutura, investimentos maciços em novas
estradas, trens de alta velocidade, novos sistemas hidráulicos,
construindo cidades inteiras”. Os chineses construíram duas cidades
novas, quase sem residências, e depois eles divulgaram na imprensa às
empresas americanas: “Nós temos uma cidade vazia aqui, vocês podem dar
subsídio e trazer seu negócio pra cá”.
Este é um
caso clássico do que eu chamo de um capitalismo de culto das cargas. Os
indonésios veem aviões voando, então eles criam uma faixa aérea na
selva, achando que, se eles construírem essa pista, então, os negócios
virão. A mesma coisa acontece na China: eles constroem as casas,
esperando que os negócios venham, mas esse é um problema imenso. Isso
não foi feito só centralmente, mas também nos governos locais e com os
bancos locais. “Emprestem para os governos e permitam que eles construam
o que eles puderem”.
Então, houve
uma grande urbanização. Na verdade, o que a China estava fazendo, num
grande sentido, era o que os EUA fizeram em 1945, os investimentos em
infraestrutura, em estradas, a indústria de automóveis – altamente
lucrativa na China, porque o aumento de proprietários de automóveis foi
enorme –, construindo cidades, investimento em infraestrutura e todo
esse tipo de coisa. Em outras palavras, os chineses estavam construindo
casas e enchendo-as com coisas, como uma maneira de lidar com a crise.
O resultado foi um boom no
mercado de propriedade chinês: os preços das propriedades em Xangai
dobraram em um ano, eles têm aumentado numa taxa de cerca de 40%, 50%
por ano, no país inteiro, nos últimos cinco anos, e qualquer pessoa que
oferece matéria-prima para os chineses está indo muito bem, porque
metade da produção de aço do mundo foi pra China, eles consumiram metade
da produção de cimento nos últimos cinco anos, eles consumiram vastas
quantidades de metais… Então, se você fornece essas matérias-primas,
você se dá muito bem. O Chile se deu muito bem, por causa da grande
demanda de cobre, os preços subiram. A Austrália se deu muito bem.
Então, se você for para lugares como a Austrália e disser “Como é que
você se sente em relação à crise?”, eles dirão “Que crise?”. Até na
Argentina – que passou por sua própria crise em 2001/02 -, quando esta
crise chegou, e você dizia para as pessoas “Como é que está indo a
crise?”, eles diziam “Ah, sempre tem uma crise na Argentina.”, mas,
economicamente, a Argentina está indo muito bem. Aqui também vocês estão
indo muito bem. Então, todos os países que estão orientados para o
comércio chinês estão indo muito bem, especialmente se há uma empresa
que exporta pra estrutura chinesa e há um projeto interno de
investimento em infraestrutura.
Então, você
tem esse tipo de projeto de habitação neste país, e grandes projetos de
construção que estão acontecendo no Chile, na Argentina, e grandes
projetos de construção também nos estados do Golfo, lugares como Dubai,
assim por diante. Nessas partes do mundo, não há colapso, em parte, por
causa da mobilização de um grande projeto de urbanização. Quanto excesso
de capital foi absorvido, em Dubai, por aquele impressionante projeto
de construção urbana? Então, o que estamos vendo é um uso global da
urbanização, grande parte do qual agora está recebendo poder de uma
estrutura financeira interconectada, um uso global da urbanização, por
meio do qual os economistas estão tentando estabilizar, e isto está
sendo trabalhado na China, ou seja, a China está crescendo, e outras
partes do mundo também estão crescendo, mas ela não pode funcionar nos
EUA, porque os EUA já construíram as suas estradas, as suas casas e já
encheram essas casas com coisas. Então, nós temos um excesso de casas
por toda parte, o despejo de casas, cerca de 6 milhões de casas foram
desapropriadas, existe um problema muito grande com habitação nos EUA.
Ao mesmo tempo, nos EUA, há uma tentativa política, especialmente pelo
Partido Republicano, por razões políticas, de impedir investimentos
infraestruturais que o Obama quis fazer dizendo que nós não podemos
sustentar, porque a dívida dos EUA é muito grande. Eu já vou voltar a
isso daqui a pouco.
*
Mas o que
estou fazendo aqui são duas coisas: eu quero falar sobre a geografia do
projeto de urbanização e, em segundo lugar, quero falar sobre sua
história, e como há uma conexão muito grande entre o processo de
urbanização e as crises macroeconômicas, a formação da crise, ou seja,
“qual o seu papel histórico na formação de crises e na sua resolução?”
Economistas
convencionais nunca pensaram muito nisso. Quanto ao campo dos
economistas marxistas, as pessoas também não prestam muita atenção,
porque a urbanização não é considerada como um campo muito significativo
de estudos – só algumas pessoas, como eu, estudam isso, e eu fico
falando que é importante, e as pessoas falam que tudo bem, mas não se
importam muito.
Recentemente,
houve alguns estudos interessantes, e o que foi descoberto é que, nos
anos 20, muito excesso de capital foi jogado num boom de construção e no desenvolvimento de construção nos EUA. Este boom
esteve localizado em pouquíssimas áreas – Flórida sempre parece ser um
bom lugar, Nova Iorque e Chicago. E o que aconteceu foi que, enquanto
não havia instrumentos financeiros sofisticados, havia algumas
estratégias similares de financiamento emergindo naqueles mercados, e
havia, portanto, um boom muito grande nos preços de propriedades, durante os anos 20. Este boom,
entretanto, terminou um ano antes da grande crise da bolsa de valores, e
o que eles estão reconhecendo, agora, em círculos oficiais é que houve
uma relação entre a crise do mercado de propriedade, em 1928, e o
colapso da bolsa de valores, em 1929. E o colapso da bolsa, em 1929,
atingiu tudo, enquanto que o colapso do mercado de propriedade, em 1928,
atingiu somente o setor de construção, e era nesse setor que a maior
parte da perda de empregos estava acontecendo, em que grande parte das
dificuldades ocorriam. Até os anos 30, essa foi uma das áreas principais
de depressão na economia americana, e foi a que chamou a atenção
política dessas novas instituições de hipotecas, que entraram no
cenário.
Então, o que
isso sugere é que há uma relação entre acumulação de capital e
urbanização, muito significativa em termos da dinâmica histórica do
capitalismo. Além disso, quando você começa a observar bem de perto,
percebe que o preço das propriedades tem um papel muito importante na
acumulação de riquezas da burguesia.
Agora, vamos
voltar ao século 16 e as classes altas inglesas, que conseguiram mais
dinheiro da propriedade de terra, nos séculos 17, 18 e 19, do que das
fábricas de Manchester. Esta foi uma das formas principais como a
riqueza foi acumulada por indivíduos privados. E este ainda é o caso.
Por exemplo, uma pessoa como Donald Trump, você olha e diz que é um bom
exemplo de como a riqueza pode ser acumulada dessa forma. Na China,
surgiram muitas pessoas agora que são bilionárias, muitas delas
envolvidas no desenvolvimento da propriedade, na incorporação. Aqui
também a incorporação é muito importante. Num certo sentido, a
urbanização é um campo de acumulação de capital e, portanto, é vital
para a manutenção do acúmulo de capital a longo prazo. E, num lugar em
que você encontra repetidas quebras na bolsa de valores, mas depois
recuperações com projetos de incorporação, esse é o caso.
Então, nós,
politicamente, precisamos prestar muito mais atenção à dinâmica urbana,
em termos daquilo que a acumulação de capital faz. E, para se declarar
envolvido em uma política anticapitalista, nós temos de pensar a
urbanização como um campo de luta de classes. É aí que eu tenho um tipo
de história muito peculiar com meus colegas marxistas que gostam de
falar sobre a classe trabalhadora: suas definições sobre a classe
trabalhadora têm a ver com o trabalho nas fábricas, e eu sempre disse “E
as pessoas que constroem as cidades? E as pessoas que mantêm a cidade? E
todo este capital fixo na cidade, a sua manutenção?”, e as pessoas
dizem “Ah, tudo bem, eles estão aí, mas a classe trabalhadora nas
fábricas é o que realmente conta”.
Então, eu
comecei a dizer “Bem, como é que o acúmulo de capital pode tratar a
cidade como um campo aberto para suas atividades, e onde está a
resistência a isso?”. Se você observar, verá resistência por toda parte,
porque a reurbanização, quase invariavelmente, envolve uma economia de
espoliação, e a economia de espoliação, geralmente, significa o que eu
gosto de chamar de acumulação por desapossamento: você desprovê as pessoas da sua vizinhança, dos seus espaços de moradia, porque você quer aqueles espaços para a incorporação.
Eu me lembro
de visitar uma cidade, Seul, na Coreia, e havia enormes colinas, que
estavam sendo derrubadas por gangues contratadas pelos incorporadores,
para tornar aquele lugar inabitável. Daí, então, eles construíam os
arranha-céus que eles queriam construir. Mas é claro que havia
resistência, e havia comunidades inteiras que se organizavam de uma
forma militar, para resistir a essas expulsões. Nós vemos, na China,
esse projeto de urbanização que se apoia na aquisição de terra urbana e
rural, e que está gerando uma oposição considerável, e há muitos
relatórios, na China, de conflitos violentos com relação a esses
projetos de urbanização.
Redefinição da classe trabalhadora
Isso me faz
voltar pra uma questão muito maior, que é de que forma a cidade é um
campo viável para pensar a política da luta de classes, mas pensar sobre
isso significa redefinir o que você quer dizer com classe trabalhadora.
Eu gostaria de redefinir a classe trabalhadora como todas aquelas
pessoas que produzem e reproduzem a vida urbana, e que geralmente está
vivendo numa situação precária, que, cada vez mais, até nos EUA, vivem
nos setores informais; E esta classe – que a maior parte dos meus
colegas não quer considerar como uma classe, eles têm uma definição
diferente –, está ativamente envolvida na resistência a essa política de
desapossamento, elas estão tentando preservar um outro tipo de noção do
que é urbanização. Porque a definição capitalista de urbanização não
tem a ver com a criação de uma vida social, não tem a ver com a criação
de comunidades políticas, ela tem a ver, simplesmente, com a construção
de casas e encher essas casas de coisas, para manter o processo de
acumulação continuadamente. E fazendo isso de tal forma que a política e
toda oposição se fragmente, pela propriedade de casas – se isso
acontecer, ótimo. E, se você observar as consequências políticas da
suburbanização nos EUA, verá que quase todo mundo nos subúrbios vota nos
republicanos, eles não estão interessados nas questões sociais, é uma
grande forma de controle social. Isso foi explicitamente compreendido,
nos anos 30, quando essas instituições para facilitar o financiamento de
hipotecas foram estabelecidas. Havia um relatório que dizia que os
proprietários de casas não entravam em greve, eles precisavam pagar suas
hipotecas, se não, eram despejados. Eles não podem sustentar a perda
dos seus empregos, eles não podem lidar com uma greve e, possivelmente,
serem demitidos. Então, era uma medida de controle social que também se
torna altamente significativa.
Revolução urbana
Depois, eu
pergunto “O que acontece quando a gente começa a pensar na cidade como
um lugar em que algumas formas de luta podem realmente funcionar?”, e é
uma questão muito interessante. Quantas vezes houve revoluções urbanas? A
Comuna de Paris é uma clássica, que é considerada, pelos esquerdistas,
como tendo sido feita pelos trabalhadores, mas não foi feita pelos
trabalhadores. É o meu tipo de definição de classe dos trabalhadores,
mas, depois… este não é um fenômeno tão incomum. Houve uma greve geral
de Seattle, de 1919, teve uma insurreição em Córdoba, Argentina, em
1969, teve uma comuna de Xangai, em Petersburgo e, se você observar os
movimentos revolucionários, eles, geralmente, são muito interconectados
na rede urbana – isso aconteceu até em 1848, houve uma revolução em
Paris, mas simultaneamente também houve uma em Viena, em Varsóvia, em
Milão, em Frankfurt.
E, quando
você pensa em 1968, o que você vê? Você vê movimentos urbanos por toda
parte, e, mais recentemente, houve esse evento impressionante, em 15 de
fevereiro de 2003, havia 3 milhões de pessoas nas ruas de Roma, 2
milhões nas ruas de Madri, 1,5 milhão em Barcelona, 1,5 milhão em
Londres, e Deus sabe quantos em Nova Iorque, porque a gente não pode se
manifestar em Nova Iorque. Foi um movimento simultâneo, que ocorreu em
muitas cidades, cerca de 280 cidades no mundo tiveram um movimento que
era contra a guerra do Iraque. E o que nós vimos, com Ocuppy Wall Street? Também vários movimentos simultâneos.
Então, a
rede urbana parece muito significativa politicamente, mas, politicamente
na esquerda, nós nunca pensamos com muito cuidado sobre o que isso pode
significar e como isso pode ser usado. E aqui está uma outra coisa: eu
me mudei pra Nova Iorque três semanas antes do evento que hoje nós
chamamos de 11 de setembro, e o que era interessante, sobre morar
em Nova Iorque, é que tudo parou de se mexer, por três dias você não
podia ir para as pontes, não podia passar pelos túneis, o metrô foi
fechado, não tinha movimento e, de repente, os poderes perceberam que,
se não tivesse movimento, não haveria acumulação de capital. Então, o
prefeito de Nova Iorque foi pra televisão e fez o apelo “Saiam para as
ruas, peguem os seus cartões de crédito e comecem a comprar, comecem a
consumir, vão para a Broadway, vocês podem ver os melhores shows,
e os ingressos estão disponíveis”. Houve o reconhecimento de que, se a
cidade fechasse, parasse… essa é uma força econômica muito poderosa, e
isso foi acidentalmente colocado em uso, em 2006, nos EUA.
Em 2006,
alguém decidiu, no Congresso, que eles iriam criar uma nova lei, em que
eles iriam criminalizar todos os imigrantes ilegais, não seria mais uma
ofensa civil, mas criminal. Isso foi enorme, provocou uma reação enorme
da comunidade de imigrantes, é claro, em especial, os imigrantes
ilegais. Então, começaram a surgir protestos, e houve um dia em que foi
anunciado que todos os imigrantes, especialmente os ilegais, não fossem
ao trabalho, e eles não foram. Adivinhe o que aconteceu… Los Angeles
parou, São Francisco parou, Chicago parou, Nova Iorque não parou
totalmente, mas foi muito afetada, muitas indústrias, reconhecendo o que
estava acontecendo, simplesmente não abriram.
Em outras
palavras, parar a cidade é um movimento político muito importante, e nós
vemos isso acontecendo politicamente, de tal forma que o centralismo na
cidade se torna muito significativo politicamente. A gente vê isso na
Praça Tahrir, no Cairo, em Wisconsin, no Madison Square… em
muitos lugares, em que a política urbana se torna um campo em que muitas
coisas podem começar a acontecer, e isso começa a envolver um grupo
totalmente diferente da população.
Agora, nós temos, por exemplo, em Nova Iorque, um grupo chamado Congresso de Excluídos Políticos.
São todos os trabalhadores que não podem criar sindicatos, por exemplo,
todos os trabalhadores domésticos. O Congresso de Trabalhadores
Excluídos toma atitudes na cidade, e ele também se une aos movimentos
urbanos, para tentar militar sobre a qualidade da vida urbana e os
problemas da vida urbana, os problemas que têm a ver com a
gentrificação, e assim por diante. E o que nós vimos – que é ainda mais
impressionante – na Bolívia, foi uma cidade como El Alto, que se
mobilizou para depor dois presidentes, no espaço de três anos. El Alto é
privilegiada, porque as três principais rotas que servem La Paz passam
por El Alto, então, se você bloqueia essas três estradas, a burguesia
fica sem comida em La Paz. Mas El Alto se tornou o centro, como
Cochabamba, também na Bolívia, para uma política de transformação.
Então, um
dos argumentos que quero colocar é que a urbanização é tão importante
com relação à crise, à formação da crise e à resolução da crise,
precisamente porque ela é tão importante para a classe capitalista, em
termos do seu acúmulo de riquezas. Então, ela também deve ser tão
importante para a esquerda, como um campo onde as organizações acontecem
para tentar militar numa luta anticapitalista. Há, na realidade, uma
história de luta anticapitalista que tem base nas cidades, e a esquerda
tem que sair dos seus preconceitos contra os movimentos urbanos como
veículos de uma luta anticapitalista.
Talvez isso
não exista tanto aqui no Brasil, mas, na Europa ocidental, há uma
tradição da esquerda que diz que só os trabalhadores das fábricas
importam. O Partido Comunista ainda diz isto, eles falam que só importam
os trabalhadores precários.
Então, é aí
que eu gostaria de começar a pensar sobre uma nova política, que é uma
nova política urbana anticapitalista, que coloca a questão: “Por que nós
não pensamos, de uma forma mais coerente, sobre qual seria uma boa
cidade socialista, e em que sentido é possível construir uma cidade
comunal e socialista, no lugar de uma urbanização capitalista?” Este é o
projeto político que me parece ser algo que vale a pena perseguir. Eu
não garanto que esta seja a resposta, mas é um caminho e um projeto que
merece uma grande discussão e reflexão por parte da esquerda, porque o
proletariado tradicional nos EUA já desapareceu, como na Europa também.
O que nós
temos é o que os franceses chamam de trabalhadores precários e
temporários. É muito difícil mobilizá-los pelos partidos tradicionais,
mas é absolutamente vital, como nós temos visto nos movimentos de
direitos dos imigrantes de 2006, manter a cidade funcionando. Então,
chamar a atenção do trabalho é um uso tático da cidade, como forma de
engajamento político. Como eu vejo, há muitas possibilidades que não
podem ser realizadas no momento presente, e este é o problema que eu
gostaria de passar pra vocês, pra que vocês resolvam, porque é a sua
geração que terá que resolvê-lo.
A destruição criativa
Uma coisa
que nós precisamos também observar, que eu não tive tempo de falar é a
política que Joseph Schumpeter chama de destruição criativa: que uma das
formas como você pode sair da crise é através da destruição e da
desvalorização. Já houve uma grande quantidade de destruição e
desvalorização, em algumas cidades dos EUA. Talvez vocês já tenham visto
imagens de Detroit, que é uma cidade que parece ter sido destruída por
algum tipo de guerra, uma máquina de guerra, e o que isto quer dizer é
que há grandes perdas nos valores de ativos. A gente pode acrescentar
alguns números, mas, nos EUA, perto do valor de um ano de produção do
país foi perdido pela desvalorização que ocorreu nos ativos financeiros
em geral e na habitação, em particular. Então, uma das formas como você
obtém acumulação crescente é destruindo a acumulação passada, e é claro
que isso geralmente acontece em uma crise. A crise geralmente tem a ver
com a desvalorização, e a destruição e a questão quantitativa – o
crescimento de 3% – se você destruir o equivalente à produção de um ano,
por meio da desvalorização de ativos, então, você abre caminho pra um
crescimento de 3% no ano seguinte, simplesmente reconstruindo o que você
perdeu no ano anterior, e quanto mais você perde, tanto mais fácil se
torna sair da crise, porque há uma série de possibilidades mais abertas.
A
desvalorização de ativos é muito traumática para aquelas pessoas que os
possuem, e os ricos possuem ativos, mas muitos desses ativos, hoje em
dia, são mantidos por fundos de pensão, então, na realidade, o que você
pode acabar fazendo, com essa desvalorização, é destruir os direitos de
pensão de grandes segmentos da população, como muitas pessoas nos EUA,
no mundo acadêmico. Eu tenho fundo de pensão privado e, de vez em
quando, eu olho pra ver o que está acontecendo com ele. Em 2008/09 ele
caiu, eu perdi cerca de 20% dos meus bens, e eu acho que isso está muito
ligado ao crescimento subsequente. Então, você abre espaço para o
futuro, destruindo parte do passado, e essa foi uma das coisas
significativas que aconteceram entre 1939 e 1949, muita destruição
ocorreu, e a reconstrução se tornou significativa.
Eu tenho um
exemplo particular disso: quando estive no Líbano, em 2008, no meio
desta crise, eu perguntei às pessoas no Líbano “Tem uma crise aqui?”, e a
resposta foi “Não, não há crise aqui no Líbano”. Por que não? Porque os
israelenses destruíram tanto do sul de Beirute, que houve um grande
projeto de reconstrução, para reconstruir o sul de Beirute. E eles
tinham seu próprio projeto de reconstrução, que era financiado… Então,
esse também é um exemplo do papel da destruição, que está envolvido
agora nessa reconstrução.
Então, se é
pra haver destruição criativa, eu gostaria de ver isso nos EUA, por
exemplo, num projeto de reurbanização dos EUA, que é sair do estilo
suburbano e começar a reconstruir as cidades como Detroit, reconstruir
com uma imagem diferente. Você também pode ligar isso a questões
ambientais, você deve tentar lidar com questões de transporte,
residência e trabalho de uma nova forma. Existe a possibilidade de obter
de volta os 3% fazendo uma reurbanização maciça e coerente, mas seria
um projeto de reurbanização que não, necessariamente, teria a ver com a
máquina política de crescimento e como eles encaram a urbanização.
Então, iria significar uma transformação revolucionária, no que nós
queremos dizer com vida urbana, e a transformação revolucionária de como
nós lidamos com construção e reconstrução dos ambientes urbanos. Cada
vez mais, há uma população urbana global de sete bilhões de pessoas.
Isso, é claro, vai exigir um trabalho imenso.
Como pensar uma cidade
Uma das
coisas que eu acho que precisa acontecer, dentro do marxismo, é uma
reconexão com as vozes das ruas. E uma das coisas que me atrai no
trabalho de Henri Lefebvre, por exemplo, em A produção do espaço, A revolução urbana e O direito à cidade,
é que ele é uma resposta ao que Lefebvre estava encontrando nas ruas de
Paris, e eu acho que isso, no nível em que ele já estava trabalhando,
há anos, e abrir-se para as cidades cria uma teoria muito melhor. Quando
eu trabalhei com o Movimento do Direito à Cidade, em Nova Iorque, ou com o Congresso dos Trabalhadores Excluídos,
o que eu tenho a dizer hoje, esta noite, ressoa com as pessoas que
estão trabalhando politicamente nesses grupos. Houve até um deles que me
perguntou – a pergunta que está na última parte da minha fala –, ele me
disse “Como é que a gente organiza uma cidade inteira?” Eu acho que é
uma coisa muito interessante. Eu não fiz essa pergunta, ele fez, ela
veio das ruas, das pessoas trabalhando nas ruas. “Como é que a gente faz
isso?” Eu disse “Não tinha pensado nisso”, ele disse “Por que você não
pensa? Você é um acadêmico”. Então, o livro que eu acabei de publicar
tem a ver com isso, como você organiza uma cidade inteira.
Eu acho que é
aí que o marxismo precisa ir, mas, à medida que entramos nesse campo, a
gente não precisa abandonar tudo que Marx falou sobre a teoria da
crise. O que estou tentando fazer, no Enigma [O enigma do capital], é integrar essas ideias, o desenvolvimento teórico, nessas questões que vêm das ruas. Como é que você organiza toda uma cidade?
*
Bem, agora, a
questão das reformas, a gente vive num mundo muito complicado. Se ele
fosse rompido completamente agora, nós morreríamos de fome em algumas
semanas. Você pode ver o que acontece, quando as coisas ficam totalmente
rompidas, não seria agradável. Então, uma revolução, a transformação
não me parece ser do tipo violenta. A grande questão é criar uma agenda
de reformas e transformá-la num projeto revolucionário. Há muitas
reformas que apontam para uma direção revolucionária e, portanto, uma
das questões é saber quando a reforma é um instrumento revolucionário e
quando ela não é. Eu acho que isso também precisa ser muito bem pensado.
Marx fala
sobre o sistema financeiro como um mundo em que o capital comum das
classes é redirecionado, ele fala sobre a associação de capital; a
coletivização do capital, do sistema financeiro é absolutamente crucial
para a dinâmica do capitalismo. Sempre foi. Há uma conexão muito
interessante, em que eu tenho trabalhado teoricamente (eu acho que já
encontrei a resposta), que diz que a acumulação de riquezas, ao longo do
tempo, sempre foi paralela à acumulação de dívidas. Quando eu percebi
isso – e percebi isso porque estava acontecendo isso, e era
necessariamente assim –, eu escrevi que o Partido Republicano, nos EUA,
por ser tão antagonista à dívida, pode ter um papel mais importante
contra o capitalismo do que as classes trabalhadoras, porque a dívida é
absolutamente fundamental à maneira como a demanda efetiva se
internaliza dentro da dinâmica do sistema de capital, porque ela depende
de comprar agora e pagar depois.
Então, a
acumulação de dívidas, como sendo uma parte necessária do sistema, não é
algo periférico, é fundamental e sempre foi. Marx já tinha reconhecido
isso, quando ele falou de uma formação de uma “bancocracia” no século
17, que é uma fusão do Estado e dos interesses financeiros. Agora, nós
vemos essa fusão representada pela palavra Banco Central e, de uma forma
estranha, quando você observa a situação, nós estamos realmente vivendo
sob a ditadura dos bancos centrais mundiais. Eu estou muito
impressionado com o poder dessas instituições. Isso não significa que
eles sempre tomam as decisões corretas – a evidência é de que os bancos
centrais adotaram políticas erradas, como Greenspan fez na primeira
parte do século: ele afundou o mundo numa crise mais profunda do que a
que está acontecendo agora.
Há um debate
sobre a financialização e seu significado, mas o que eu disse é que ela
sempre foi significativa, e a dificuldade com ela é que, por um lado,
ela é necessária e, por outro lado, é quase impossível controlá-la, é
isso que o Marx fala n’O capital:
que, por um lado, você absolutamente precisa disso e, por outro lado,
você não pode parar essas ondas de atividades especulativas. O que nós
vemos, portanto, é a história da especulação financeira, que gera
quebras, crises, e que geram impacto no resto da economia. Eu tenho
tentado colocar o volume dois d’O Capital na rede, mas,
fazendo isso, eu trouxe pro volume dois as questões do mercado de
capitais do volume três. Então, na palestra do volume dois, há algumas
partes do volume três, eu pego algumas dessas questões e tento voltar à
maneira como Marx entendia essas questões, e o significado das questões
financeiras com relação ao acúmulo de capital.
Uma das
coisas que aconteceram na história do capitalismo é a história da
aceleração, as coisas acontecem mais rápido, a lógica disso é dada pela
ênfase em algo que Marx chama de turnover. Se eu posso diminuir
o meu ritmo mais rápido do que você, antes do que você, então, eu
produzo mais, eu ganho mais. Então, a história do capitalismo tem sido a
história da aceleração, aceleração de tudo, a aceleração geralmente
leva a um tempo de decisão cada vez menor. Isto significa que os
sistemas econômicos se tornaram o que nós chamamos de sistemas
acoplados, sistemas em que uma coisa se mexe e imediatamente uma outra
coisa muda. As finanças no século 19 não eram acopladas. Quando os
computadores entraram nas finanças, nos anos 80, isto começou a ficar
totalmente acoplado ao sistema, quando o comércio computadorizado
acontece, tudo isso ocorre em segundos.
Então, está tudo na rede, eles não contratam um especialista de Wall Street,
eles contratam físicos e matemáticos, porque são eles que sabem como os
computadores funcionam e podem usar os programas de computador. O
resultado disso é que nós vivemos num mundo em que as crises são muito
mais problemáticas, alguém em algum lugar pode vender muitas bombas, e
há um movimento de preço que dispara o comércio de computadores, que
dispara uma outra coisa, e tudo se move muito rapidamente. Então, tem
muita volatilidade no mercado financeiro, que faz que seja muito
difícil, a qualquer pessoa, estabelecer um controle exato sobre o que
está acontecendo nesses mercados, porque os mercados estão
descentralizados.
Então, o
capitalismo está mudando, e suas formas de organização mudam algumas
possibilidades. Uma das coisas que a esquerda precisa começar a pensar é
como ela pode fazer essa luta de classes contra o sistema financeiro.
Você pode fazer uma luta contra os bônus bancários, mas será que você
pode lutar contra o sistema financeiro e transformá-lo, para que ele se
torne mais socializado e mais democrático? É uma questão enorme, porque,
se este for um instrumento de poder pra classe capitalista, é aí que
você tem que ir, pra tentar confrontar o poder do capital. Essas
transformações ocorreram em todos os tipos de área.
Uma das
coisas que eu acho muito importante – e aqui nós chegamos à última
questão – é a distinção urbano-rural. Henri Lefebvre tem uma história
muito interessante sobre isso. Originalmente, ele trabalhava na
sociologia rural, e depois ele ficou interessado na urbanização, nos
anos 60, e depois ele colocou a questão sobre qual é a relação entre a
cidade e o campo. Ele começou a sua vida num mundo em que havia uma
sociedade muito distinta ali, que era chamada campesinato, a sociedade
dos camponeses, que tinham uma organização e uma cultura muito
diferente, que só vendiam seus produtos e seus excessos para os
mercados, e era autossustentável. Portanto fazia sentido dizer que era
um mundo separado, e eles chamavam de camponeses, ou campo, ou rural,
que é muito diferente do urbano.
Mas, quando
você chega no final dos anos 60, o campesinato na França desapareceu, e
essa cultura distinta também desapareceu. O campo está sendo absorvido
na urbanização, ele se torna um lugar em que a população urbana vai para
lazer, se torna exclusivamente um lugar de produção de mercadorias para
a cidade, está muito mais conectado, mais integrado ao mundo urbano. E,
quando Lefebvre escreveu A revolução urbana, ele falou sobre o desaparecimento dessa distinção, e quando ele escreveu A produção do espaço,
agora ele está falando sobre a produção de espaços diferenciados,
dentro desse processo de colonização do mundo pela vida urbana, e a
urbanização da vida.
Nos últimos
seis meses, eu tenho vivido em uma terra, na Argentina, em um lugar
relativamente longe. Eu tento criar plantações e uma organização
autossustentável, mas ela é altamente urbanizada de muitas outras
formas: nós usamos telefones celulares, eletricidade, a gente até
assiste a televisão. A ideia de que essa é uma sociedade separada, os
camponeses, ou algo desse tipo, é muito distinto da vida urbana? Sim, é
diferente, mas é diferente em termos de um desenvolvimento geográfico
heterogêneo, não distinto no sentido de que aqui está a cidade, aqui
está o campo. É claro que é muito diferente, quando você vai para Buenos
Aires, um lugar muito diferente. Às vezes eu preciso ir para a cidade,
pra usar a internet, e é por isso que eu peço desculpas, se alguém
tentar falar comigo por internet, porque minha conexão é muito ruim, mas
eu gosto disso.
Eu acho que
essa distinção… a gente não deve achar que ela é tão importante, a gente
tem que pensar em um mundo muito mais integrado, que tem várias formas
de possibilidades de organização política. Então, quando você tem os
movimentos do campo, como é o MST, e qual é a sua política, a política
numa certa arena deste desenvolvimento desigual, a sua política não está
isolada e separada. Em algumas partes do mundo, em que as distinções
tradicionais entre os camponeses e as formas tradicionais de vida e o
capitalismo ainda persistem, você pode encontrar isso, na África, em
partes da Ásia, mas, de uma forma geral, o mundo não está mais
organizado assim. Então, acho que a gente tem política que não tem mais a
ver com uma política do campesinato, uma política rural diferente, que
não está conectada com a política urbana. Eu acho que essas conexões… se
nós ignorarmos essas conexões, entre esses dois tipos de política,
então perderemos a possibilidade real de criar ações políticas realmente
interessantes. Eu mencionei o exemplo de El Alto, na Bolívia. El Alto é
uma cidade, mas é uma cidade de imigrantes que têm fortes conexões com o
campo em volta. O campo foi comercializado e perdeu grande parte das
suas raízes indígenas, então, há uma conectividade entre os movimentos
revolucionários no campo, que fluem para a cidade, em Cochabamba. As
guerras foram feitas pelas pessoas ocupando a cidade por fora, e as
pessoas na cidade deram apoio aos movimentos que estavam acontecendo no
campo. Então, o desenvolvimento geográfico desigual, e eu gosto de
pensar em política em termos desse desenvolvimento desigual, ao invés de
duas ideias distintas, rural e urbana.
Ermínia Maricato: Pessoal,
obrigada pela presença de todos, eu acho que nós ouvimos muita coisa
hoje sobre as cidades que, na verdade, meio que saíram da agenda
brasileira nos últimos… bem recentes tempos. Então, vamos lá ver se a
gente retoma as discussões sobre a cidade e os movimentos sociais. Muito
obrigada a todos e principalmente ao nosso convidado.
* Conferência
do professor David Harvey que aconteceu no Auditório Ariosto Mila da
FAUUSP, em São Paulo, no dia 28 de fevereiro de 2012.
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