segunda-feira, 3 de junho de 2013
A cineasta Haifa Al-Mansour (Imagem da BBC) venceu o seu primeiro grande
desafio. Ao conseguir finalizar o filme ‘O Sonho de Wadja’ – o primeiro
rodado inteiramente na Arábia Saudita –, seguramente entra para a
história do cinema mundial. Falta agora exibir o trabalho em sua terra
natal, uma barreira difícil de superar diante da ilegalidade das salas
de cinema no país.
Luciana Garcia de Oliveira
Para realizar ‘O Sonho de Wadja’ na Arábia Saudita, a cineasta Haifaa al
Mansour contou com um roteiro de qualidade e teve de superar uma série
de barreiras para poder concretizar seu projeto com sucesso. O filme
conta a história de Wajda, uma menina de 10 anos de idade que promove
algumas revoluções particulares, uma delas em especial: a compra de
bicicleta em Riad, capital do país.
Logo nas primeiras cenas, Wadja sai em defesa de sua mãe, após ser
insultada pelo motorista que a levava todos os dias ao trabalho. O homem
reclamava de um atraso. No reinado saudita, vale lembrar, as mulheres
são proibidas de dirigir, e a solução para que muitas possam se deslocar
para o trabalho (com a devida autorização do marido), ao hospital, ao
shopping ou ao mercado é contratar o serviço de motoristas particulares.
A forte repressão aos direitos femininos é retratada na escola de
meninas em Riad. É nesse espaço que a diretora da instituição
educacional chama a atenção das garotas por estarem rindo em voz alta e
por estarem sendo vistas. Afinal, não é de “bom tom” que os homens sejam
atraídos pela voz feminina, e muito menos que elas estejam ao alcance
dos olhares masculinos. “Meninas de respeito não podem ser vistas” – é o
que se diz em uma das cenas da película. São nesses tipos de sutilezas e
observações inteligentes pelas quais a cineasta expressa suas críticas
ao regime. Em muitas ocasiões, as mulheres são retratadas no filme como
as grandes mantenedoras do sistema opressor, como é o caso da mãe de
Wadja e da diretora da escola.
Ainda no ambiente escolar, as alunas deparam-se com a questão do
casamento arranjado e prematuro. A própria Wadja, dentro de casa, é
constantemente ameaçada pela família, caso não se comporte da maneira
que julgam adequada. É também dentro do convívio familiar que o pai da
protagonista ameaça ter um segundo casamento caso a mãe não consiga
engravidar de um filho do sexo masculino.
Todas essas questões, advindas por intermédio de um regime de caráter
extremista representada por uma antiga dinastia, foram uma das barreiras
enfrentadas não apenas pela protagonista, mas também pela cineasta
Haifa Al-Mansour. Em entrevista a Agência Reuters, ela contou que
durante as filmagens das cenas externas tinha de se esconder atrás de
seus assistentes homens. Em diversas ocasiões, foi obrigada a dirigir os
atores à distância numa van, comunicando-se com toda a sua equipe por
intermédio de um walkie-talkie. Tudo para aparecer dando ordens em um
set de filmagens, em meio a uma sociedade que ainda não reconhece os
direitos femininos.
Muito além da questão desses direitos, a dificuldade em analisar a fundo
a Arábia Saudita deve-se à existência de pouca literatura a respeito
dos rumos históricos internos e quase nenhuma informação da imprensa
internacional acerca das questões políticas, culturais e sociais no
país. A situação torna-se ainda mais grave na medida em que o país
recusou-se à aderir à Declaração Universal de Direitos Humanos. Seus
representantes políticos, adeptos da doutrina político-religiosa
wahabista, considerarem o documento corrompido pela blasfêmia (discurso,
expressão, opinião capaz de ofender algo respeitoso ou reverenciado
pela religião muçulmana).
De acordo com essa ideologia, é comum que a dinastia saudita encaminhe
jovens para lutar contra o que consideram blasfêmia em outros países,
como o Afeganistão, Paquistão e, atualmente, a Síria. Na tentativa de
firmar-se como influência no mundo árabe e islâmico e, na existência de
alguns Estados árabes cujos representantes foram acusados pelo reinado
saudita de não seguirem as diretrizes políticas e religiosas da Casa de
Saud, suas autoridades não se esquivam a enviar mercenários e a
instruírem esses homens a pegarem em armas, com o objetivo de defender
suas concepções religiosas e políticas contra aqueles que julgam
deturpá-las.
Diante dessa conjuntura, não é surpresa alguma nos depararmos com a
quase ausência do movimento da “Primavera Árabe” na Arábia Saudita,
muito embora grande parcela da sociedade, sobretudo jovens e mulheres,
sejam ansiosos por mudanças estruturais políticas e sociais. Algumas
tentativas de manifestações chegaram a ser sufocadas por uma imediata
medida de “ajuda financeira” (suborno) à população, muito embora se
estime que no país exista um considerável índice de desemprego e a
manutenção do regime de escravidão, envolvendo sobretudo trabalhadores
estrangeiros. Pior, o regime saudita reprimiu (e ainda reprime) os
levantes em alguns países próximos de suas fronteiras, como é o caso do
Bahrein, cuja população xiita reclama de violenta perseguição política e
religiosa em muitas esferas.
Haifa Al-Mansour venceu o seu primeiro grande desafio. Ao conseguir
finalizar o seu filme – o primeiro filme rodado inteiramente na Arábia
Saudita –, seguramente entra para a história do cinema mundial. Outro
desafio seria, enfim, poder exibir o seu trabalho em sua terra natal, a
Arábia Saudita, mas isso é muito difícil, se levarmos em consideração a
ilegalidade das salas de cinema no país. A alternativa seria divulga-lo
em formato de DVD e distribuí-lo à população, ou mesmo apostar na
transmissão na TV local. Mas isso seria outra batalha a ser vencida,
diante do controle que o governo exerce sobre as informações e a livre
circulação do pensamento. Assim como Wadja, ela não desanima. (Com Carta
Maior)
0 comentários:
Postar um comentário